Em 2023, a escala de produção musical será a maior da história da humanidade. Todos os dias, 120 mil músicas são inseridas em serviços de streaming. Este nível histórico de criatividade de baixo para cima coexiste, paradoxalmente, com um vazio cultural. Um mundo de tecnologia que é interconectado e comunitário e uma realidade de distanciamento e atomização. Assim foi refutada a singularidade social profetizada após o advento da internet.
O Spotify, o maior serviço de streaming de música, simboliza um impasse na luta entre socialização e lucro. Antes dos sites de redes sociais de fácil utilização, como o Facebook, terem dado início à Internet criteriosamente controlada que conhecemos e desprezamos, os magos da tecnologia escandinavos reconheceram que alguns dos maiores tesouros da humanidade – a arte, a propriedade intelectual e os estudos – tinham sido reduzidos à sua essência mais básica, formas de comunicação intercambiáveis. Reduzidas a uns e zeros e livres da névoa do valor monetário, eram apenas a forma como tínhamos avançado para além da linguagem, para exprimir ideias, influenciar uns aos outros e cooperar.
Enquanto os magnatas da música veneravam o CD, os magos lançavam-se nessa luta, aparentemente sem se darem conta do seu caráter proletário. Eles usaram técnicas aperfeiçoadas até ao limite do isolamento social para se apoderarem da Internet, construindo uma infraestrutura orgânica que prometia desmercantilizar a informação para sempre. Usando a tecnologia digital para distribuir coletivamente os produtos da criatividade em massa, com os rostos espelhando o brilho rude de sites warez (sites de pirataria) e dos canais de IRC (sistema rudimentar de bate-papo por texto), eles abriram uma caixa de Pandora que nenhum poder poderia fechar.
Mantinham uma tradição que remonta a Mozart, que transcrevia ilegalmente de memória o Miserere de Gregorio Allegri, quando apenas alguns nas câmaras internas do poder estavam autorizados a possuí-lo. Diz a lenda que este ato de pirataria precoce foi responsável pela popularidade duradoura dessa peça no domínio público. Reconhecido no seu tempo e hoje como um dos ícones revolucionários da música, Mozart alcançou uma notoriedade popular que obrigou o establishment a abraçá-lo, recebendo um título de cavaleiro papal e estabelecendo a base teórica de uma tradição burguesa outrora progressista.
Como um improvável pioneiro do Pirate Bay e mestre do seu tempo, Mozart tem uma linhagem como instigador do período clássico e como antagonista das rupturas do século XX. Neste último, o cidadão comum cruzou as fronteiras raciais e sintetizou as suas próprias formas de massa, em oposição às tradições do século XVIII, há muito mantidas pelos departamentos de música.
Com o advento do Napster (programa de compartilhamento de arquivos lançado em 1999), o poder da arte e das massas voltou a combinar-se, pondo em xeque o modelo de lucro que a indústria musical seguia desde o aparecimento do consumismo. A maioria das pessoas já não aceitava pagar por unidades individuais de arte, por mais portáteis e compactas que fossem. Habituaram-se a uma gama mais vasta de música, bem como a um meio cada vez mais simples de a apreciar e partilhar. Um tal desafio à lógica cultural do capitalismo exigia uma resposta.
Na sequência da morte do Napster nas mãos dos tribunais, restavam duas alternativas que poderiam substituir a acessibilidade do site em relação a cantos mais subculturais da Internet, que foram pioneiros no compartilhamento de arquivos. Ambos surgidos da cena geek sueca – o Spotify e o Pirate Bay – representavam visões alternativas e concorrentes para o futuro. O primeiro tinha um atrativo comercial ao dar prioridade à inovação e à facilidade de utilização, e estava envolvido de forma positiva com a indústria tal como ela existia. O segundo travou uma guerra contra o próprio conceito de propriedade intelectual, motivado pelo libertarianismo ingênuo dos primórdios da Internet. Em comparação com os empresários do Spotify, os fundadores do Pirate Bay tinham ideais elevados, saídos do Piratbyrån, um grupo sueco pró-pirataria.
Focal Foto / Flickr
O ícone do aplicativo Spotify
À medida que os piratas minavam as leis das nações, os inovadores inicialmente perdiam milhões, numa aposta que valeu a pena. As grandes empresas acabaram compreendendo que a maioria das pessoas haviam habituado-se a baixar e compartilhar música gratuitamente. Desde a popularidade dos downloads ilegais no Napster até as formas cada vez mais acessíveis de consumir conteúdos criativos, como o YouTube e o próprio Spotify, a sobrevivência do Pirate Bay e de sites de torrents como ele fez avançar a janela de Overton (ou ‘janela do discurso’; termo que se refere às ideias socialmente aceitas) e constituiu um raro exemplo do século XXI de expectativas elevadas da classe trabalhadora.
O Pirate Bay sobreviveu pela mesma razão de sua existência. Tal como as formas de comunicação que libertou, o site era um simples conjunto de uns e zeros que podia ser baixado ou hospedado por qualquer pessoa. Uma série interminável de sites-espelho garante a sobrevivência do site até os dias atuais, frente a enormes desafios judiciais, batidas policiais e encerramento do site principal. Hoje, sem dúvidas, é a visão pirata da propriedade intelectual que está ameaçada.
O Spotify domina a forma como consumimos música, e por boas razões. É mais fácil pagar uma assinatura mensal para ter acesso imediato à maioria das músicas que queremos ouvir. Certamente, mais fácil em comparação com o processo agora árduo de fazer o download de um arquivo torrent, subí-lo para o seu cliente de torrent e talvez até mesmo transferi-lo, depois, para o dispositivo em que você o usará. Será que se pode culpar a maioria das pessoas por sacrificar a guerra contra a propriedade intelectual no altar da conveniência? Todos saem ganhando, não é?
Tudo o que é sólido se desmancha no ar, como diz o velho cliché marxista. Os poderosos conseguem o que querem, como sempre, às custas de todos os outros. Produto de uma nova geração de geeks em ascensão, o projeto Spotify sobreviveu e expandiu seu domínio em colaboração com o grande capital. Os monopólios da música ganham certamente, pois dominam as receitas do streaming de uma forma ou de outra. A grande maioria das receitas de streaming é gerada pelo Spotify, mas dezenas de serviços de streaming semelhantes floresceram desde o seu lançamento, concorrendo pela sua fatia do bolo. Em teoria, os artistas deveriam ganhar, uma vez que se torna possível a qualquer pessoa fazer o upload de música nas mesmas plataformas que as grandes produtoras. É exatamente isso que se apregoa como a “democratização” da música.
Embora o termo “democratização” soe como algo progressista numa sala de reuniões de marketing, a dependência das plataformas do poder e da influência das grandes produtoras prejudica claramente a sua seridade. A realidade é que menos de 10% dos artistas que publicam no Spotify conseguem sequer ultrapassar os 100 ouvintes mensais. Com menos de um terço de um centavo por reprodução e com uma estimativa de 366 mil reproduções por mês para se ganhar um salário mínimo, o compromisso entre tecnologia e capital que o Spotify oferece representa uma ameaça à criatividade.
Nas condições do neoliberalismo, poucos têm tempo livre para fazer o que é preciso para contribuir de forma significativa para a criatividade. Será de admirar, então, que a música que nos é fornecida pelo “Descobertas da Semana” do Spotify se assemelhe tanto, na melhor das hipóteses, aos grandes nomes do passado e, na pior, a uma experimentação pós-moderna infrutífera que satisfaz apenas os mais insuportáveis?
No capitalismo, onde o artista sacrifica necessariamente o seu tempo para fazer arte, faz sentido exigir um pagamento. O tempo gasto na criação não é tempo gasto vendendo força de trabalho a um empregador. Num sistema diferente, em que a maior parte da vida de um trabalhador não é dedicada a ganhar dinheiro para outros, a arte pode ser melhor compreendida, em termos do seu valor real ou da falta dele. Neste conceito, somos assombrados por uma visão de um mundo melhor, onde uma ferramenta de fácil utilização, como o Spotify, poderia proporcionar uma verdadeira democratização da música.
Em A Ideologia Alemã, Karl Marx apresenta uma visão da sociedade democratizada do século XIX que orienta os comunistas: “Na sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera de atividade exclusiva, mas cada um pode realizar-se em qualquer ramo que deseje, a sociedade regula a produção geral e permite-me fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, fazer crítica depois do jantar, tal como tenho vontade, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico”. Se pudermos trabalhar sem opressão e exploração, e o resto do nosso tempo for nosso, a distinção entre trabalhador em tempo integral e artista patrocinado pela riqueza desmancha-se verdadeiramente no ar.
Por mais restritivo que o Spotify possa parecer hoje, é apenas a necessidade de satisfazer as exigências de lucro das poucas pessoas que detêm ações em apenas três organizações que se interpõem entre nós e uma versão do século XXI do sentimento de Marx. Se uma indústria com um alcance tão grande na nossa psique é controlada por tão poucos indivíduos, não há muito entre nós e o controle da nossa própria indústria.
Enquanto o Spotify Wrapped (“Retrospectiva Spotify”) é lançado e nos permitimos nos envolver emocionalmente nesta invasão da nossa privacidade, pense por um instante em um mundo onde a música realmente nos pertença.
(*) Michael Roch é membro da sessão de Lancashire da Liga da Juventude Comunista do Reino Unido
(*) Tradução de Raul Chiliani