É fácil se enganar quando o assunto é política internacional, até mesmo quando se é um estudante da matéria. Kenneth Waltz, por exemplo, é conhecido por seu realismo estrutural, ou neorrealismo, que marcou época nas teorias de Relações Internacionais (RI) desde a publicação de sua obra-prima em 1979.[1] Alvo predileto dos teóricos liberais e também das chamadas teorias críticas (gramscianas, feministas ou pós-modernas)[2], a figura de Waltz foi sendo, aos poucos, associada à política militarista dos Estados Unidos da América (EUA) durante a Guerra Fria. Mas esta visão é, no mínimo, distorcida. E os efeitos da distorção ultrapassam os debates acadêmicos, pois a associação imediata do realismo de RI com o Partido da Guerra encobre a atuação de muitos daqueles que desejaram e ensejaram importantes conflitos internacionais.
Waltz, por exemplo, já em 1967 opunha-se à Guerra do Vietnã usando as teorias realistas que sempre defendeu: não vale a pena “matar pessoas a fim de libertá-las”, dizia ele; nem “encobrir-se, com um manto de justiça, em torno de uma causa nacional, para legitimar um banho de sangue”. Além de criticar a então famosa Teoria do Dominó, Waltz deplorava a “violência desnecessária”, a “destruição generalizada” e as “perseguições” decorrentes das supostas “boas intenções” das grandes potências, especialmente da mais poderosa dentre elas: os EUA. Para ele, a escalada belicista no Vietnã era tão perigosa quanto a “escalada de justificativas” inventadas pelos estrategistas e propagandistas da guerra em seu país.[3]
Muito antes de Henry Kissinger negociar a derrota em 1973 (após haver escalado a guerra de uma forma sem precedentes), Waltz já advogava por “qualquer acordo possível” com o Vietnã do Norte como o único “caminho que a sabedoria poderia tomar” e duvidava que alguém melhor do que Ho Chi Minh pudesse governar o país asiático.[4] Mas o jovem Waltz não estava sozinho. Ninguém menos do que Hans Morgenthau igualmente opunha-se ao conflito no sudeste asiático. Morgenthau, o grande decano da teoria realista de RI nos EUA no pós-2ª Guerra, chegaria a abandonar seu cargo no governo de Lyndon Johnson, sendo publicamente combatido pela Casa Branca até em programas de televisão por conta de suas críticas ao envolvimento norte-americano no Vietnã.[5] Na visão de ambos os realistas, Waltz e Morgenthau, guerras ideológicas sem fim (contra o comunismo) não eram do interesse nacional dos EUA.
Em 2003, quando o terrorismo pareceu substituir o comunismo no auge da Guerra do Terror do governo Bush II, Kenneth Waltz novamente manifestou-se. Tomou a dianteira na oposição acadêmica contra a invasão do Iraque, no que foi acompanhado por notáveis discípulos ‘neorrealistas’ como John Mearsheimer – que hoje é o maior expoente acadêmico de RI no ocidente a opor-se à guerra da OTAN na Ucrânia.[6] Para Mearsheimer, a atual guerra é lamentável e era evitável, por destoar daquilo que deveria ser o interesse estratégico dos EUA ou da União Europeia. Levar democracia e livre-mercado para outros povos, especialmente à força, viola os preceitos centrais do realismo.[7] Mas está na base do programa liberal para as relações internacionais.[8]
Não se tratam de coincidências. Expoentes do realismo, em geral, parecem cautelosos frente aos grandes conflitos bélicos de suas respectivas épocas. O britânico Edward H. Carr, alegadamente o fundador do realismo na moderna teoria de Relações Internacionais, opusera-se até mesmo à guerra contra a Alemanha nazista, sendo um destacado defensor da política de ‘apaziguamento’ frente à ameaça hitlerista. Seu maior oponente, o liberal Norman Angell (ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1933), era o grande advogado da guerra imediata. Assim, os realistas nem sempre acertam (Carr faria uma autocrítica por subestimar aquilo de que Hitler seria capaz), mas associá-los à guerra tout court é simplesmente errôneo.
NATO North Atlantic Treaty Organization / Flickr
O presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha é recebido pelo secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, na sede da organização
Hoje, Mearsheimer é um crítico da destruição de Gaza por Israel, o que lhe confere tanta antipatia no establishment político quanto a sua rejeição da interferência da OTAN na Ucrânia. Em 2012, Waltz já enfurecera Benjamin Netanyahu, que chamou o eminente professor de ‘estúpido’ por defender (no último artigo que escrevera em vida) que a paz no Oriente Médio somente seria alcançada com o fim do monopólio nuclear israelense naquela região.[9] Os realistas, como todos os outros analistas, podem errar, claro está. Mas encará-los como porta-vozes exclusivos do complexo industrial-militar é, novamente, enganoso.[10]
O Partido da Guerra opera, nos EUA, por dentro de ambos os partidos – Democrata e Republicano – assim como possui representantes acadêmicos tanto entre teóricos realistas ou liberais. O maniqueísmo não funciona aqui. Acreditar que um defenda a paz e o outro a guerra é um erro que a esquerda não pode se dar ao luxo de cometer, pois a guerra é um assunto sério demais para ser deixado apenas para os generais – ou para os teóricos profissionais de relações internacionais. Se a prática é mesmo o critério da verdade, como queria Lênin, é preciso averiguar como cada um se portou diante da realidade da guerra antes de rejeitar esta ou aquela escola de pensamento sobre política internacional.[11]
Ainda mais quando se tratam de debates entre estas duas escolas, que conjuntamente ignoram o imperialismo como categoria relevante de análise. O intelectual palestino Edward Said afirmava que “[t]odo império, em seu discurso oficial, disse que não era como todos os outros; que as suas circunstâncias eram especiais, que ele tem a missão de esclarecer, civilizar, trazer ordem e democracia, e que usa a força somente em último caso. E, mais triste ainda, há sempre um coro de intelectuais dispostos a dizer palavras calmantes sobre impérios benignos ou altruístas, como se não devêssemos acreditar em nossos olhos ao observar a destruição, a miséria e a morte trazidas pela última mission civilizatrice”.[12] É obrigatório perguntar, então, caso a caso, quem dançou conforme a música e quem, no coro, teve a coragem de desafinar.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas:
[1] Waltz, K. (1979) Theory of International Politics. Reading-MA: Addison-Wesley Publishing Co.
[2] Ver, por exemplo, a famosa coletânea de textos contra o seu trabalho editada por Robert Keohane (1986): Neorealism and its critics. NY: Columbia University Press.
[3] Waltz, K. (1967) “The Politics of Peace”. International Studies Quarterly, Vol. 11, No. 3, p.206-207.
[4] Waltz (1967:205; 210).
[5] No obituário do Washington Post, o eminente professor foi descrito justamente por sua oposição àquela guerra: ‘Hans Morgenthau, crítico da guerra do Vietnã”. Disponível em (acesso em dezembro de 2023): https://www.washingtonpost.com/archive/local/1980/07/21/hans-morgenthau-vietnam-war-critic/94e0555e-8cba-43fd-a661-64847032f3b8/
[6] Para uma análise da oposição acadêmica à Guerra do Iraque, ver: Long, D. et al. (2015). “Knowledge Without Power: international relation scholars and the US war in Iraq”. International Politics, vol. 52, n.1, pp. 20-44. Sobre a guerra na Ucrânia, antes mesmo da invasão russa, ver: Mearsheimer, J. (2014) “Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault: the Liberal Delusions That Provoked Putin”. Foreign Affairs, vol. 93, n. 5, pp.77-84.
[7] Para conferir os seis princípios-base do realismo político de acordo Hans Morgenthau, ver: A Política entre as Nações: a luta pelo poder e pela paz. Brasília: Ed. UnB e Imprensa Oficial do Estado de SP, pp. 4-28.
[8] A troca de regimes autoritários no exterior por outros considerados mais livres está no topo da agenda liberal. Em muitas intervenções militares contra o Sul global, foram os defensores do liberalismo, em uma versão ou outra, que acreditaram ser desejável pegar em armas (ou fazer com que outros pegassem) para transformar o mundo à imagem e semelhança de seus ideais. O liberalismo é, neste sentido, o auge do eurocentrismo: possui a certeza de sua superioridade moral, política e econômica sobre tudo e sobre todos na face da terra. Os autores liberais canônicos neste tema confirmam-no com nitidez. Ver: Kant, I. (2008) A Paz Perpétua: um projecto filosófico. Covilhã: LusoSofia Press; e John Stuart Mill (2006) “A Few Words on Non-Intervention”. New England Review, vol. 27, n.3, pp. 252-264.
[9] Waltz, K. (2012) “Why Iran Should Get the Bomb: nuclear balancing would mean stability”. Foreign Affairs, vol. 91, n.4, pp. 2-5. Para as declarações de Netanyahu e outros críticos, ver (acesso em Dezembro/2023): https://www.nytimes.com/2013/05/19/us/kenneth-n-waltz-who-helped-shape-international-relations-as-a-discipline-dies-at-88.html
[10] Teóricos de esquerda e críticos do neorrealismo de Waltz e cia. já notavam, por outro lado, o potencial emancipatório contido no ‘realismo clássico’. Ver, a respeito: Cox, R. (1981) “Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory”. Millennium – Journal of International Studies, vol. 10 n. 2, pp.130-32. E, sobretudo: Ashley, R. (1981) “Political Realism and Human Interests”. International Studies Quarterly, vol. 25, n.2, pp.204-236.
[11] Lenin, V. (1946) Materialismo e Empiro-Criticismo: notas e críticas sobre uma filosofia reacionária (cap. II, 12). Rio de Janeiro: Ed. Calvino. Disponível em (acesso em dezembro de 2023): https://www.marxists.org/portugues/lenin/1909/empiro/12.htm
[12] Said, E. (2003) Orientalism. (Preface). London: Penguin Books, p. xvi (tradução livre).