“Papai, então me explica para que serve a História”. É com esta pergunta de seu filho que Marc Bloch inicia o célebre Apologia da História.[1] Escrita em meio à ocupação nazista, a obra jamais seria concluída pelo eminente professor, que se voluntariara para lutar a segunda guerra mundial da sua vida. O fim trágico de Bloch e de seu livro inconcluso são bem conhecidos. Hoje, a pergunta de seu rebento segue relevante também para outros âmbitos. Um deles, diante dos eventos que nos invadem pelos noticiários é, obviamente, a Política Internacional. Assim, apesar de sua importância, uma pergunta raramente feita (talvez por falta daquela seriedade em entender o mundo que, paradoxalmente, vemos às vezes mais nas crianças do que nos adultos) seria, afinal: “para que serve o Internacional?”.
Para a esquerda, em especial, trata-se de um tema delicado. De modo geral, os assuntos internacionais tendem a ser apropriados para fins de disputa local. Neste caso, ‘o internacional’ serve para o reforço da identidade de grupo e animação das próprias bases: é um uso instrumental. O fenômeno pode ser visto em toda a parte e foi acentuado na era das mídias digitais. Questões complexas como a situação política na Venezuela, a guerra na Síria ou, mais recentemente, na Ucrânia, tornam-se objeto de ácidas disputas entre os militantes. Porém, via de regra, quase não há debate real, já que o interesse é, antes de tudo, marcar-posição. Como diria um brilhante intelectual haitiano: “O Haiti importava para todos eles, mas apenas como um pretexto para falar de alguma outra coisa”.[2]
Ignorar um problema, contudo, não o resolve. Bastará uma soma aritmética das respectivas lutas de classes domésticas para se chegar a uma percepção adequada da luta de classes global? Ou haverá na dimensão mundial algo qualitativamente diferente do que uma simples adição das situações nacionais é capaz de revelar? Não existe resposta pronta, mas evadir-se da pergunta é arriscado, pois dela dependem táticas e estratégias. Marx e Engels, no Manifesto, afirmavam (em 1848) que “quando os antagonismos de classes, no interior das nações, tiverem desaparecido, desaparecerá a hostilidade entre as próprias nações”. Mas eles também sabiam que as revoluções sociais podem ser sustadas justamente pela falta de apoio internacional ou pela intervenção de potências estrangeiras, daí a constante lembrança de que “os operários não têm pátria”.[3]
Entre a direita, além do abuso feito por nacionalistas xenófobos e racistas, outra serventia do ‘internacional’ para fins políticos é aquela praticada pelo Liberalismo: a clivagem nacional/internacional serviria ao propósito de limitar os horizontes da imaginação política moderna àquilo que o Estado Liberal (burguês) tem para oferecer – fora dele, somente um perigoso mundo em Estado de Natureza, numa guerra de todos contra todos, latente ou permanente. Melhor resignar-se, portanto, às promessas de desenvolvimento, segurança e liberdade que somente uma comunidade política encerrada num Estado pode oferecer.[4]
Seja como for, em pleno século XXI, abster-se de indagar para que serve ‘o internacional’ desorienta os setores populares em suas mais duras batalhas, até naquelas de nível nacional ou local (se é que tais ‘níveis’ existem separadamente). Por exemplo, um certo uso pode fazer crer que uma reprimenda a Bolsonaro, ou ao Estado de Israel, em alguma votação nas Nações Unidas, tenha efeito legal semelhante ao que acontece sob uma jurisdição estatal, levando a um ciclo de expectativa-frustração-descrédito no seio da própria militância que o insuflou.
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Frustração e descrédito não bastam, é verdade, para alterar o modus operandi em curso. Afinal, após muito ‘tuitar’, quem se importa hoje com Aleppo, Benghazi ou com o fato dos Estados Unidos e da União Europeia terem restabelecido (discretamente) relações com o ‘regime de Nicolás Maduro’, após tanto esforço para derrubá-lo? Questões esotéricas, talvez – por serem estrangeiras – logo pouco custosas, à primeira vista, aos verdadeiros embates (domésticos) da luta de classes, diriam alguns.
Mas as consequências da negligência com ‘o internacional’ vão além – ou chegam mais perto: alguém duvida dos efeitos nefastos sobre a política brasileira que a aventura militar no Haiti produziu ao projetar, durante treze anos, figuras de proa do bolsonarismo, como viriam a ser o general Heleno (1º comandante da MINUSTAH em 2004) e seus sucessores? Resta alguma dúvida de que tal operação ‘internacional’ acabou servindo de incubadora para uma geração inteira de militares que ocupariam a cena política nacional (e infinitos cargos na máquina pública) logo após o fim da Missão da ONU, em 2017? Custou-nos caro demais.
A lição que fica é que “você pode não estar interessado na guerra”, ou em qualquer outro fenômeno internacional, “mas a guerra está interessada em você”.[5] Aqui, não iremos responder para que serve ‘o internacional’. Marc Bloch tentou dedicar um livro inteiro (e o fim de sua vida) para responder a seu filho, Étienne Bloch, para quê servia a História. Ficaremos satisfeitos, por ora, se ao menos a urgência em se indagar seriamente sobre a Política Internacional, em vez de usá-la para ganhos políticos imediatos, ficar demonstrada.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas:
[1 ] Bloch, M. (2001) Apologia da História, ou, o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 41.
[2] Trouillot, M.R. (2016) Silenciando o Passado: poder e a produção da história. Curitiba: Editora Huya, p.163.
[3] Engels, F.; Marx, K. (1998) Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, p. 56. Hoje sabemos que regimes autointitulados socialistas também podem ter importantes conflitos internacionais entre si, como nos mostraram os embates entre Vietnã e Camboja; e China ou Iugoslávia com a União Soviética. Sobre as relações entre o marxismo e teoria de Relações Internacionais, ver: Halliday, F. (2007) Repensando as Relações Internacionais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, cap. 2.
[4] Walker, R.B.J. (2013) Inside/Outside: Relações Internacionais como teoria política. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio.
[5] Aforismo de L. Trotsky sobre a guerra, citado por: Booth, K. (1991) “Security in Anarchy: Utopian Realism in Theory and Practice”. International Affairs, 67(3), p. 530.