Milei é um político explosivo? Não, é um subproduto perfeito da crise econômica, social e política dos nossos tempos. Milei é um membro nato da linhagem de Pinochet, Trump, Tacher, Uribe, Lasso, etc. O desencanto prolongado, a frustração recorrente e a ansiedade por ver uma “luz no fim do túnel” convertem os cidadãos comuns em vítimas de decisões desesperadas. A esquerda socialista e os progressistas não deveriam esperar milagres para terem um papel político mais digno.
No domingo, 19 de novembro de 2023, o povo argentino tomou uma decisão que só pode ser explicada pela crise multidimensional que sofre aquele país e pela incapacidade de seus governantes em oferecer soluções. Principalmente as novas gerações (jovens entre 18 e 40 anos) se voltaram em massa contra Massa. O peronismo que parecia imbatível hoje inicia uma etapa de agonia sem retorno, por enquanto.
A vitória de Milei foi uma surpresa atrás da outra. Primeiro aconteceu o que poucos esperavam, a derrota de Massa. Depois veio, como uma tempestade, a diferença de votos (11%) que tornou os resultados incontestáveis. Nada consistente com o que foi previsto no último debate presidencial, onde Milei estava uma pilha de nervos inspirando pena e Massa demonstrou força e sagacidade suficientes para esmagar seu adversário ocasional. Parecia o prelúdio de uma derrota catastrófica para a extrema direita e, certamente, muitos gostaram da surra.
Após o debate, uma esmagadora maioria de analistas davam como certa a vitória de Massa. O próprio Papa Francisco conseguiu dar uma “ajudinha”. Então, parecia um fato consumado. Os méritos de Massa foram potencializados pelos deméritos de Milei. Sua atuação parecia dizer que deixaria a presidência para outro momento.
No entanto, mais uma vez, a realidade política pode se tornar obsoleta, de uma hora para a outra, segundo “análises objetivas” de dezenas de especialistas dedicadas a acompanhar esses processos. Agora que temos os resultados, logo depois de todos os que apostaram em Massa baterem no peito, a questão que fica é: Por que Milei venceu? Qual é o bastidor da votação? As respostas estão em construção e aspiramos contribuir para este esforço que transcende as fronteiras argentinas.
Hipótese de trabalho
É um lugar comum onde as pessoas afirmam que estão de saco cheio da política tradicional. Sendo verdade, é insuficiente para explicar o que aconteceu na Argentina e em vários países do planeta. Existem as seguintes hipóteses de trabalho:
-
Há uma geração de jovens (entre 18 e 39 anos) e quarenta e poucos anos cansados das formas atuais de se fazer política. São décadas de frustração. Votar no Milei, ou parecidos, não é “outra forma de fazer política”, mas sim uma via de fuga às diferentes dimensões da crise que atinge os eleitores que perderam toda a esperança para um mundo melhor. “Não me importa o que aconteça” parece ser o slogan destes tempos, embora não deixe de ser uma exigência de algo melhor na política.
-
Esta geração foi persuadida de que a sua vida deveria ser a “mais fácil e bem-sucedida possível” em um curto intervalo de tempo. Para isso não são necessárias ideologias ou princípios, “que não se comem”. Tudo o que é necessário é pragmatismo puro e simples. Discursos como o de Milei, diante de tanta frustração e ansiedade, acabam canalizando aquela rebeldia juvenil sem horizontes próprios. A juventude que votou no Milei deve ter ficado deslumbrada com propostas malucas como a de “dinamitar o Banco Central”.
-
O descumprimento das promessas de campanha e, posteriormente, dos programas governamentais, especialmente daqueles que se afirmam de esquerda/progressista, constituem o terreno fértil para o nascimento, crescimento e fortalecimento de movimentos políticos de direita e extrema-direita que, sem qualquer vergonha na cara, abandonam os princípios básicos da democracia representativa. Essa é a direita na qual o Milei lidera.
Flickr
Javier Milei, ultradireitista, foi eleito presidente da Argentina neste domingo (19/11)
- Um povo desencantado, angustiado e frustrado pela falta de respostas aos seus problemas procura uma saída desesperada ou uma inspirada pela raiva, não importa se essa for liderada por um ultradireitista. O que importa é uma promessa firme, uma linguagem clara, mesmo que obscena, mas que não deixe dúvidas, que lhes dê a oportunidade de “dar uma lição” a quem enganou repetidas vezes. Na Argentina, este engano esteve envolvido em mais de 140% de inflação, pobreza e desigualdade sem precedentes, 90% do PIB em dívida, submissão ao FMI, etc.
- Não é só a Argentina que vive este tipo de processos políticos. Existem em muitos lugares. O Peru, por exemplo, é um cenário onde a crise multidimensional produziu uma presidente como Dina Boluarte, uma mulher sem cultura política e uma marionete dos poderes de fato. Podemos dizer o mesmo de Equador, ou do Brasil com Bolsonaro. Os países desenvolvidos não estão livres destes “líderes”. Trump, Tacher, etc. As crises não são “questões nacionais”, mas sim o sistema capitalista global que mostra a sua incapacidade de resolver os problemas da pobreza e da desigualdade. São sintomas do seu declínio.
- O individualismo e o “empreendedorismo” subjacentes têm desempenhado o seu papel no comportamento dos cidadãos, especialmente das novas gerações que durante 30 anos foram bombardeadas com propaganda e publicidade agressivas que têm colocado o individualismo como condição básica do sucesso. Então, ação coletiva, solidariedade, partidos, sindicatos, etc. Eles não têm razão de existir. A esquerda socialista na América Latina não se livrou desse “rolo compressor”.
- Milei colocou à disposição o seu PLANO DE GOVERNO para o mundo. Quem ler verá que é uma homenagem à tolice. Ele fala em retomar o “mercado livre” para a abertura interna e total ao mercado global. Ou seja, uma mensagem ancorada nas décadas de 80 e 90 do século passado, quando a globalização parecia ser o “fim da história” (Fukuyama). Milei não enxerga que quase todos os países desenvolvidos e muitos outros emergentes estejam retornando ao protecionismo. Esta extravagância pode se tornar seu “calcanhar de Aquiles”. É por isso que a ameaça de romper relações com o Brasil, a China e a Rússia por serem “comunistas” é ridícula.
- Hoje, a maioria da população não é mais aquela que “lutou pelos seus direitos”. Estamos perante uma cidadania que, depois de décadas de publicidade e ideologia neoliberal, prefere a “tranquilidade”, mesmo aos custos de assumir a repressão que caracteriza os regimes ultradireitistas. Anomia em troca de “paz social”. “Empreendedorismo” como valor total. Discursos que chegaram ao âmago das novas gerações.
Dissipando dúvidas
Se as hipóteses se sustentarem, a surpresa deveria se dissipar. Contudo, como latino-americano, senti que estávamos perdendo mais uma batalha contra a extrema direita continental. Com Massa teríamos ganhado alguma coisa? Talvez sim. Apenas impedindo o Milei da presidência teria sido um pequeno ganho para a democracia em decadência. Provavelmente o peronismo, dividido em pedaços, teria encontrado uma possibilidade de recomposição. Alberto Fernández e Cristina Kirchner teriam aplaudido com lágrimas nos olhos, teriam reivindicado a vitória como sua e, claro, Massa a teria reconhecido.
Na Argentina, como em vários países latino-americanos, a esquerda segue sendo um bom argumento para que a direita faça o que bem quer fazer. Incapaz de construir um poder alternativo, prefere se manter numa marginalidade vergonhosa, supostamente “defendendo princípios”. Não direi que é incorreto, mas é muito errado que transformem essa defesa numa maquiagem para a sua incapacidade de construir um poder alternativo digno para o povo. Por que se orgulhar desses minúsculos 2,5% dos votos? Por acaso os companheiros da Argentina esperam por um milagre que resolva a sua cegueira e incapacidade de construir alternativas de poder? À medida que continuem assim, o povo permanecerá se sentindo alienado.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano
(*) Tradução Rocio Paik