Em 29 de novembro de 2009, José “Pepe” Mujica, da coalizão de centro-esquerda Frente Ampla (FA), venceu o segundo turno da eleição no Uruguai com 53,2% dos votos, contra 42,7% do ex-presidente Luis Alberto Lacalle. A vitória de Mujica representa uma consolidação do poder da FA, já que o atual presidente, Tabaré Vázquez, não só é o primeiro presidente eleito pela coalizão, como também o primeiro mandatário esquerdista desde antes da era do regime militar (1973-85). Os cerca de 70% de aprovação popular de Vázquez abriram o caminho para Mujica, que prometeu seguir os passos do antecessor dando continuidade a suas reformas sociais moderadas, respeitando o mercado, com pouca atenção à política externa.
Visão geral dos tupamaros e da Frente Ampla
O Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros surgiu nos anos 1960 como um grupo guerrilheiro urbano buscando aplicar uma agenda de mudança política e social. Foi estabelecido para se rebelar contra o governo altamente burocrático do Uruguai, num momento em que o país experimentava altos índices de desemprego e inflação, assim como um dramático declínio da qualidade de vida. Os primeiros atos de resistência dos tupamaros incluíram o roubo a bancos e empresas e a distribuição dos fundos roubados aos pobres. Mais tarde, o movimento político culminou em atos cada vez mais violentos, como sequestros e assassinatos políticos. Em 1973, uma junta militar começou a exercer o poder nos bastidores, com o presidente Juan María Bordaberry, eleito em votação supostamente fraudulenta, atuando como um líder de fachada. Em 1976, no entanto, os militares já haviam removido Bordaberry do cargo. Os regimes militares repressivos alvejaram especificamente os tupamaros radicais, assassinando e prendendo muitos de seus líderes sob a acusação de serem insurgentes esquerdistas.
Com a restauração da democracia no país, em 1985, os tupamaros se transformaram em um partido político conhecido como Movimento de Participação Popular (MPP), que mais tarde ingressou na coalizão Frente Ampla. A FA foi criada pouco antes da tomada do poder pelos militares, em 1971, e essencialmente imita o estilo social-democrata de governo. A coalizão é formada por vários partidos de centro-esquerda institucionais que oferecem uma agenda politicamente socialista. Além do mais, esses partidos de centro esquerda não só garantiram o firme apoio dos sindicatos, mas também foram totalmente integrados a um sistema partidário pluralista e competitivo.
Jorge Lanzaro, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade da República do Uruguai e pesquisador do Centro Woodrow Wilson, sublinhou que, em contraste com outros governos esquerdistas na região, como nas radicais Venezuela e Bolívia, o Uruguai possui um governo de esquerda com partidos políticos atuantes e competitivos. Além disso, apesar das crenças historicamente revolucionárias dos tupamaros, eles têm hoje uma ideologia mais moderada. Isto é demonstrado pela atual ênfase do governo em programas de inclusão social e, ao mesmo tempo, prosperidade econômica apoiada num sistema de livre mercado. Similar às social-democracias da Europa, ainda que menos consolidada e bem-sucedida, a social-democracia do Uruguai é uma defensora do Estado do bem-estar: todos, em teoria, recebem gratuitamente educação, saúde e outros serviços sociais fornecidos pelo governo.
Durante as primeiras duas décadas depois da ditadura, os dois partidos políticos tradicionais do Uruguai, o Nacional e o Colorado, ambos criados nos anos 1800, ofuscaram a FA. Isto mudou em 2005, quando Vázquez se tornou o primeiro presidente da história do país que não pertencia a nenhum dos dois partidos tradicionais, marcando uma vitória significativa para a FA e os social-democratas. Deste então, a popularidade da FA vem aumentando constantemente. Além da presidência, a coalizão detém hoje maioria em ambas as câmaras do Congresso.
Mujica: reformista social moderado ou líder populista?
Mujica, hoje com 74 anos, foi um personagem dos primórdios dos tupamaros revolucionários. Graças a seu total envolvimento com os tupamaros e à natureza opressora do regime militar iniciado em 1973, ele ficou preso durante 14 anos. Desde a restauração da democracia no país e a saída de Mujica da prisão, ele tem desempenhado um papel decisivo no cenário político uruguaio. Serviu por vários anos no Senado e também foi ministro de Pecuária e Agricultura na presidência de Vázquez. Como este, Mujica é popular entre as classes pobres e trabalhadoras graças à promessa de melhorar a qualidade de vida por meio da implementação de reformas domésticas e econômicas no mesmo estilo.
Na eleição interna da FA, a campanha de Mujica foi ligeiramente mais esquerdista do que nos últimos meses. No entanto, as tentativas da oposição de usar o passado radical de Mujica para retratá-lo como um homem-forte populista, no estilo de Chávez, se mostraram contraproducentes. A estratégia de Mujica de se distanciar do líder venezuelano e de sua retórica inflamada foi decisiva para posicioná-lo mais ao centro do que à esquerda, e garantir a vitória.
No primeiro turno, em outubro, Mujica não conseguiu a maioria absoluta dos votos, necessária para a eleição imediata, e precisou ir ao segundo turno em novembro. A fim de ampliar o apoio popular, Mujica deu ainda mais ênfase à continuação das reformas de Vázquez, numa manobra para distinguir suas políticas das de Chávez, tranquilizando assim os eleitores indecisos e céticos. Ele rechaçou o Socialismo do Século 21 de Chávez como “um monte de burocracia”. Não obstante, o governo venezuelano elogiou sua eleição: “Esta vitória histórica da esquerda ratifica que o destino dos uruguaios continua a ser o de igualdade e justiça social e consolida a vasta onda de transformação, dignidade e soberania que cruza nossa América Latina e o Caribe, tornando cada vez mais irreversível o fato de a vez dos povos ter chegado.” Embora Mujica não esteja comprometido com reformas econômicas socialistas como Chávez, o presidente venezuelano e outros líderes regionais mais moderados elogiam a dedicação do uruguaio à inclusão social.
De acordo com o professor Lanzaro, caso Mujica planejasse implementar reformas populistas ao estilo de Chávez, a força da FA tornaria a tarefa extremamente difícil. A coalizão, majoritária no Congresso, tem uma composição relativamente diversificada, que vai dos comunistas aos moderados e cria um equilíbrio interno de poder. Essencialmente, a própria coalizão modera as possíveis reformas de Mujica. Como resultado, é provável que o governo de Mujica promova apenas reformas moderadas à maneira de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Michelle Machelet no Chile.
As políticas domésticas bem-sucedidas de Vázquez
O presidente Vázquez implementou reformas sociais e econômicas muito bem-sucedidas, que resultaram em seus altos índices de aprovação. Apesar do esmagador apoio popular a Vázquez, a Constituição uruguaia proíbe a reeleição consecutiva. Vázquez implementou uma série de reformas econômicas de extremo sucesso sob a orientação de seu ministro de Economia e Finanças, Danilo Astori. As reformas de Astori foram bem-sucedidas não só por melhorar a qualidade de vida do uruguaio médio, mas também por proteger o Uruguai do choque da recessão global.
Ao contrário das políticas econômicas nacionalistas promovidas por Chávez, Vázquez aplicou reformas econômicas neoliberais comparáveis às implementadas no Chile, Peru e Brasil. Estas reformas econômicas resultaram em várias mudanças positivas para a população uruguaia. O PIB per capita do Uruguai aumentou de US$ 6.000 em 2005 para estimados US$ 10.000 em 2009, com um crescimento real do PIB de 7% ao final de 2008. A campanha de reforma econômica também resultou em um maior fluxo de investimento estrangeiro e as exportações mais que dobraram, de US$ 3,5 bilhões em 2005 para US$ 7 bilhões em 2008, antes de diminuir ligeiramente por causa da recessão global. O investimento estrangeiro começou a crescer novamente e hoje é de US$ 6,5 bilhões, segundo estatísticas de novembro.
Estas reformas macroeconômicas também ampliaram as oportunidades de trabalho e o padrão de vida do uruguaio. Por exemplo, o índice de desemprego diminuiu constantemente, de mais de 13% em 2005 para 6,4% em novembro deste ano. Vázquez também conseguiu reduzir a taxa de pobreza de 32% em 2004 para 20%, e o índice de pessoas que vivem na pobreza extrema caiu de 4% para 1,5%. Outro sucesso é o ambicioso Plano Ceibal, com a meta de fornecer um laptop com conexão à internet a cada estudante e cada professor do ensino fundamental no sistema educacional público. O plano logo será estendido aos estudantes do ensino médio.
Diante do enorme sucesso econômico, Vázquez certamente teria sido um candidato forte na última eleição. Segundo Arturo Porzecanski, professor de finanças internacionais da Universidade Americana, as reformas econômicas de Vázquez criaram um “bom” pano de fundo econômico durante a campanha de Mujica. Embora a economia uruguaia tenha experimentado um leve declínio no primeiro trimestre de 2009, o FMI observou em novembro que o país “se saiu consideravelmente bem diante da recessão global”. Porzecanski explicou que, na época da eleição, a economia estava em alta, o que deixou os temores econômicos em segundo plano quando os uruguaios foram às urnas.
O Uruguai de Mujica
Mujica baseou o programa de sua campanha nos sucessos de Vázquez e garantiu aos eleitores que daria continuidade a suas políticas. Analistas políticos acreditam que o governo de Mujica, em essência, não passará de uma extensão do de Vázquez, mas com atenção especial à educação, energia, ambiente e segurança pública. Contudo, as intenções declaradas de Mujica de manter um firme rumo econômico também têm grande importância. Danilo Astori, agora o vice de Mujica, deverá representar um equilíbrio político, já que não pertence aos tupamaros, e sim a outra facção da FA. A experiência como conselheiro econômico de Vázquez rendeu a Astori um conhecimento substancial sobre reformas econômicas. Ele continuará a garantir o sólido avanço da economia do país, baseada principalmente na agricultura e nas exportações de carne, uma economia que cresceu 7% desde a eleição de Vázquez.
Em linhas gerais, Mujica está diante de um legado de sucesso econômico. No entanto, ainda são necessários avanços e Mujica enfrentará alguns desafios na área econômica. Um dos obstáculos é a inflação. De acordo com o FMI, a inflação caiu de 14% em 2004 para projetados 7% em 2009; contudo, o Uruguai tem a segunda maior taxa de inflação da América do Sul e a terceira do hemisfério. Outro desafio econômico para Mujica será a dependência do país em relação à economia um tanto imprevisível de seu maior parceiro comercial, a vizinha Argentina. Por exemplo, a crise da dívida de 2001 na Argentina afetou gravemente a economia do Uruguai, porque este era altamente dependente das importações argentinas, e também porque a crise econômica na Argentina criou uma corrida aos bancos que se espalhou para o Uruguai. Sob a liderança de Mujica, o Uruguai poderia optar por diminuir sua dependência em relação à Argentina e se concentrar no fortalecimento de sua relação comercial já sólida com o vizinho mais estável ao norte, o Brasil.
Em termos de relações exteriores, é provável que a política permaneça a mesma. O governo de Vázquez esteve comprometido com políticas domésticas e manteve uma agenda externa mínima. Mas Mujica provavelmente será pragmático na política externa e continuará a fortalecer as relações com o Mercosul, ao lado do Brasil, Argentina e Paraguai. Dado o alinhamento de Mujica a Lula, é provável que ele permaneça ao lado do mentor brasileiro na área de relações exteriores, e também da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em questões de integração regional.
Embora a eleição de Mujica represente uma consolidação da FA, ela não significa uma mudança política significativa para o Uruguai. O mais provável é que o país continue no caminho das reformas moderadas que renderam relativa prosperidade econômica e relativo progresso ao longo dos últimos cinco anos. Talvez a maior mudança ocorra em reformas com objetivos específicos, como no setor energético, onde o petróleo importado é caro e a energia hidrelétrica não é confiável. Considerando a intenção de Mujica de continuar e aprofundar tanto os princípios neoliberais que impulsionam a economia do Uruguai quanto os programas sociais dedicados aos setores marginalizados e desfavorecidos da população, seu governo deverá manter a satisfação pública e os altos índices de aprovação obtidos por Vázquez. A vitória de Mujica é mais um exemplo da tendência latino-americana de apoiar reformistas de esquerda dedicados a melhorar as condições sociais e econômicas na região.
*Elizabeth Benjamin é pesquisadora associada do Council on Hemispheric Affairs (COHA).
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