Em Cali, as memórias estão presentes nas paredes. A terceira maior cidade da Colômbia está repleta de murais que retratam o “estallido social“: os imensos protestos que sacudiram a Colômbia de abril a junho de 2021, impulsionados por condições sociais degradantes, foram enfrentados por uma brutal repressão estatal. Pinturas de cinco metros de altura retratando jovens mortos pela polícia, que se debruçam simbolicamente por cima das avenidas congestionadas, evidenciam a resistência dos habitantes a ignorar os crimes cometidos durante o regime autoritário de Iván Duque. Este ano, no segundo aniversário da revolta, os puntos de resistencia (ou “pontos de resistência”) da cidade foram repaginados. Novas obras de arte de rua foram feitas, enquanto pontos de distribuição de comida e atuações musicais reuniram os impactados pelos incidentes: os pais de ativistas mortos pela repressão, manifestantes que ficaram com ferimentos que marcaram para sempre suas vidas. “A polícia não gostava que nos reuníssemos assim antes”, disse um grafiteiro, com uma lata de spray na mão. “Mas desde as eleições, eles têm nos deixado em paz.”
Em junho de 2022, a revolta contra Ivan Duque culminou na eleição do primeiro governo de caráter progressista na Colômbia, com Gustavo Petro presidente e Francia Márquez como vice. A última vez que um candidato de esquerda havia tentado a presidência com chances reais de vencer foi em 1948, quando a iminente vitória de Jorge Eliécer Gaitán foi interrompida pelo seu assassinato. Desde então, a população indígena e camponesa do país tem sido deixada de fora das instituições políticas, dominadas pelos interesses do agronegócio e extrativismo, impulsionados por Washington através do seu financiamento de milícias de extrema-direita.
O PIB colombiano está na média da América Latina, entretanto seus níveis de desigualdade estão entre os mais altos da região. Durante décadas, camponeses, indígenas e afro-descendentes têm estado entre os grupos que são forçados a abandonar suas terras para que seus antigos territórios caiam nas mãos de latifundiários. Conforme a economia extrativista aumentava dos anos oitenta em diante – e com ela os setores de pecuária, agricultura e produção de cocaína – os paramilitares foram tomando as terras. Sob a presidência de Álvaro Uribe (2002-2010), de extrema-direita, os oligarcas latifundiários viram suas posses territoriais aumentarem de 47% para 68%, enquanto os camponeses viviam na pobreza. A classe trabalhadora urbana sofre com baixos salários e instabilidade salarial, e sua capacidade de se auto-organizar para lutar por melhores condições foi enfraquecida pela violência sistemática direcionada a líderes sindicais e líderes comunitários. Durante o mandato de Duque, 42% da população empobreceu, graças à combinação de políticas ultra-neoliberais e o mal gerenciamento do país durante a pandemia.
Estas estatísticas são resultado de um sistema político corrupto. Em 1958, os dois partidos das elites dominantes, os liberais e conservadores, concordaram em fazer uma rotação de poder como parte de um acordo nacional. Este “duopólio” antidemocrático foi combatido pelos movimentos de guerrilha que emergiram após da Revolução Cubana; as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o ELN (Exército de Libertação Nacional) tinham como objetivo proteger os camponeses contra a violência estatal e estabelecer um pacto nacional baseado na participação popular e no anti-imperialismo. As FARC, especificamente, encontraram apoio entre a população rural mais pobre, conforme os guerrilheiros forneciam infraestrutura, serviços e segurança em territórios abandonados pelo Estado. Após meio século de luta, em 2016 o grupo acabou assinando o acordo de paz com o governo de Juan Manuel Santos. Entretanto, uma série de falhas estatais fizeram com que o conflito persistisse em regiões anteriormente sob o controle das FARC. Quando Duque chegou ao poder dois anos depois, ele propôs rasgar os acordos e adotou uma postura linha dura em relação a grupos guerrilheiros. Sua administração interrompeu o financiamento e fornecimento de recursos previstos para que programas de segurança e desenvolvimento rural fossem implementados. O número de assassinatos de ativistas sociais e antigos guerrilheiros disparou. Manifestantes que demandavam paz foram massacrados.
O “Governo da Mudança” de Petro, composto por diversos partidos do centro à esquerda, unidos em um chamado “Pacto Histórico” foi eleito com a promessa de enfrentar estes problemas endêmicos do país e suas crises políticas decorrentes. Petro ganhou com 50% dos votos em 2022, obtendo surpreendentemente altas taxas de votação nas regiões do Pacífico, Caribe e Amazônia – enquanto seu adversário de direita, Rodolfo Hernandéz, obteve 47% dos votos. O novo presidente fez um apelo no sentido de atender as necessidades daqueles que foram marginalizados: comunidades rurais, minorias étnicas, jovens, trabalhadores de baixa renda. Seria possível atender às demandas dessa população revivendo o acordo de paz e estimulando o desenvolvimento econômico: implementar os acordos de 2016 e, ao mesmo tempo, promover uma transição verde. Em termos legislativos, o governo até o momento mirou em três áreas que considera chave: o mercado de trabalho, saúde e aposentadorias – enquanto inicia diálogos com os diversos grupos armados do país.
Existem limites claros e evidentes do que Petro pode conseguir, dado que ele constitucionalmente é limitado a um mandato de quatro anos e enfrenta uma grande oposição do “establishment”. A falta de uma maioria no Congresso compromete sua capacidade de fazer reformas substanciais. Uma aliança inicial entre o governo e partidos da elite tradicional – liberais, conservadores e o Partido Social de Unidade Nacional – foi fragmentado à medida que o partido uribista do Centro Democrático (CD) e a Liga Anti-Corrupção criada por Hernandéz faziam de tudo para obstruir quaisquer políticas sociais. A administração está sob constante ataque da mídia, encabeçada pela revista neoconservadora Semana, pertencente ao conglomerado bancário Gilinski. Eduardo Zapateiro, ex -general de alta patente do Exército colombiano, fez uma campanha feroz contra Petro, até mesmo chamando-o de “criminoso” durante sua campanha eleitoral. Embora Zapateiro tenha deixado o cargo após as eleições de 2022, Petro trocou quinze generais ligados à violações de direitos humanos, gerando incertezas sobre o relacionamento das Forças Armadas do país com o Poder Executivo. Diante dessas restrições, como devemos avaliar as tentativas de Petro de remodelar a Colômbia, um ano após sua posse?
Os direitos dos trabalhadores colombianos estão entre os mais fracos do mundo, após anos de legislações anti-sindicais e de assassinatos de milhares de trabalhadores organizados pelas forças do Estado e seus representantes paramilitares desde a década de 1970. A nomeação por parte de Petro de uma sindicalista experiente, Gloria Ramírez, para o Ministério do Trabalho foi um passo importante para corrigir esta história manchada de sangue. O projeto de legislação trabalhista do governo, apresentado ao Congresso no início deste ano, aumentaria os pagamentos de horas extras e para o trabalho noturno, restringiria a informalidade e reforçaria os contratos de trabalho. Também imporia diversas regras e parâmetros a serem seguidos pelo vasto setor de trabalho informal, que representa pelo menos metade da força de trabalho no país e é particularmente o setor mais vulnerável em tempos de crise. No dia 20 de junho, estas reformas foram arquivadas por falta de quórum – um resultado celebrado pelo CD e pelo partido de centro-direita Cambio Radical. Enquanto os opositores proclamaram que a nova legislação proposta pelo governo de Petro estava morta, o Ministério do Trabalho insiste que pode ser aprovada, embora ainda não tenha conseguido os votos necessários para tanto.
A reforma do sistema de saúde de Petro teve um desempenho ligeiramente melhor do que esta anterior. A reestruturação dos serviços de saúde pública era uma necessidade urgente após a pandemia, visto que trabalhadores do setor hospitalar morreram ou se demitiram em massa devido às perigosas condições de trabalho. A ausência de investimento significa que as crianças das regiões periféricas, como La Guajira e Chocó, continuam morrendo de subnutrição e de doenças evitáveis, enquanto muitos colombianos pobres, em especial nas zonas rurais, têm dificuldade em ter o acesso mais básico à saúde. O novo projeto de lei do governo aborda a saúde como um direito universal, afirmando que a condição de classe não deve determinar as chances de sobrevivência. Além de aumentar os salários dos trabalhadores da saúde, o novo projeto busca reduzir a disparidade do acesso à saúde das populações rurais e aumentar a prevenção de doenças curáveis. Os partidos do “establishment” que compõem a aliança congressional de Petro foram unânimes ao se oporem a esta reforma. Em resposta, Petro rompeu o pacto e removeu os principais ministros que se opunham aos planos de eliminar o protagonismo dos provedores privados de saúde. Conseguiu assim passar a sua nova legislação num primeiro turno, e agora espera um novo debate. Mas a quebra do acordo com o Congresso prejudicou as suas tentativas de projetar uma imagem de unidade e, mais adiante, pode dificultar a aprovação de outras leis.
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Gustavo Petro está um ano à frente do governo colombiano
A lei de aposentadoria de Petro foi aprovada na sua primeira votação no Congresso em 14 de junho, estando previstos mais duas votações, com a oposição firme do CD e dos conservadores. De acordo com a legislação atual, o emprego informal e os baixos salários significam que apenas um quarto dos trabalhadores colombianos se qualificam para receber aposentadorias, muitos deles forçados a enfrentar dificuldades econômicas ou a dependência familiar. As novas propostas garantiriam uma aposentadoria mínima a todos os aposentados, reduziriam a diferença entre os que ganham menos e os que ganham mais e transfeririam os fundos de aposentadoria privados para o sistema estatal Colpensiones. Os opositores afirmam que esta medida penalizaria os trabalhadores que recebem salários mais elevados, enquanto o governo projeta que ela tirará três milhões de idosos da pobreza.
Até agora, a tentativa de Petro de acabar com o conflito armado e reativar o acordo com as FARC – conhecida como estratégia de “Paz Total” – teve resultados ambíguos. Consciente de que os acordos de 2016 foram anteriormente prejudicados pela hostilidade da direita, Petro tentou enquadrar o processo de paz como um projeto nacional e não como uma trégua bilateral, nomeando adversários políticos como José Félix Lafaurie, presidente da associação ultraconservadora de rancheiros FEDEGAN, para as suas equipes de negociação. No entanto, como as administrações anteriores não conseguiram implementar o acordo de paz, as áreas outrora controladas pela guerrilha assistiram a uma proliferação de grupos armados menores que competem para ocupar o vazio de poder. Como resultado, os conflitos continuam a ser frequentes em Cauca, Nariño e Putumayo, no sudoeste; Antioquia, Córdoba e Chocó, no noroeste; e ao longo da fronteira com a Venezuela, em Arauca e Norte de Santander. Duque exacerbou esses problemas aumentando a militarização, realizando bombardeios que mataram civis e dando aos seus soldados carta branca para cometerem abusos. Petro, pelo contrário, tentou implementar programas de desenvolvimento nestas áreas, mas esta solução a longo prazo ainda não trouxe alívio às comunidades. Só no primeiro semestre de 2023, foram mortos 82 ativistas sociais e 19 antigos guerrilheiros das FARC.
As negociações com o ELN, a maior organização guerrilheira ainda existente na Colômbia, foram retomadas de onde elas pararam durante o governo de Santos. Enquanto Santos se recusou a discutir questões de natureza macroeconômica, Petro tentou encontrar um meio-termo. Em 27 de abril, o governo e o ELN assinaram uma agenda de negociações, batizada de “Acordo do México”, que promete examinar “o modelo econômico, o sistema político e as doutrinas que impedem a unidade e a reconciliação nacional” e afirma que a construção da paz exige a “eliminação do atual sistema de exploração e depredação e a criação de condições para a igualdade social e econômica”. As negociações não têm sido fáceis, mas agora parece ser possível chegar a uma resolução. A terceira reunião terminou com o anúncio de um cessar-fogo bilateral, que começou em agosto e tem previsão de durar um período inicial de seis meses. Também foram realizadas negociações com dois grupos armados “dissidentes” das FARC: a Segunda Marquetalia, que abandonou o processo anterior de paz, e o Estado Mayor Central, que nunca aderiu a ele. Neste caso, o cessar-fogo revelou-se mais difícil de alcançar e Petro teve de enfrentar a oposição de políticos que o incitaram a abandonar seus esforços.
Depois de ter feito campanha sobre a necessidade de eliminar gradualmente a dependência econômica da Colômbia em relação aos combustíveis fósseis, que conduziu à desflorestação e à contaminação dos recursos naturais, o governo promoveu uma legislação anti-extrativismo e proibiu novas licenças de exploração de petróleo e gás. Em março, anunciou planos de transição para uma economia verde, investindo em energias renováveis e modernizando a infraestrutura. A vice-presidente Márquez, uma ativista ambiental de longa data, tem sido uma firme porta-voz desse programa. Mas como a riqueza mineral da Colômbia continua saindo do seu solo e indo para cofres estrangeiros, não será fácil garantir o nível de cooperação internacional necessário para uma grande transição energética. E se as receitas das exportações de combustíveis fósseis começarem a diminuir, o governo precisará de fontes de financiamento alternativas para projetos de redistribuição e construção da paz – que podem ser escassas.
O projeto de Petro foi impulsionado pelo ressurgimento de governos progressistas no Brasil, México, Chile, Peru, Bolívia e outros países. Apesar de suas discordâncias internas, este bloco de poder regional minou a influência norte-americana e europeia. A ascensão da China contribuiu para este reequilíbrio, uma vez que os Estados olham cada vez mais para o leste em busca de comércio e investimentos. Esta situação contrasta com o período de 2015-19, quando os governos conservadores da América Latina atuaram como interlocutores da política externa dos EUA. Enquanto Duque se juntou à tentativa de golpe apoiada pelos EUA contra o governo de Maduro, Petro reestabeleceu rapidamente as relações diplomáticas com a Venezuela, coordenando uma resposta conjunta à migração em massa e à crescente violência nas zonas fronteiriças dos países. O consenso regional também se manifestou fortemente em relação à “guerra contra as drogas” liderada pelos EUA, que tem devastado o continente há mais de cinquenta anos. Mesmo que o anti-imperialismo da primeira “Onda Rosa” não tenha se firmado a nível internacional, um mundo cada vez mais multipolar dá a Petro e aos seus aliados uma maior margem de manobra. Os receios de que o hegemon global desestabilizasse o seu governo ainda não se concretizaram.
No entanto, o governo continua vulnerável em outras frentes. Margarita Cabello, a inspetora-geral de direita encarregada de supervisionar a conduta dos funcionários eleitos, tem visado a destituição de membros do Congresso do Pacto Histórico, invocando a sua oposição à polícia durante os protestos de 2021. Francisco Barbosa, o Procurador-Geral nomeado por Duque, tem travado os processos de paz, recusando-se a revogar os mandados de captura dos líderes dos grupos armados e impedindo a sua participação nas negociações. No início de junho, a chefe de gabinete de Petro foi acusado de submeter a sua empregada doméstica a uma vigilância ilegal. Pouco depois, o próprio Petro foi acusado de se beneficiar de financiamento ilegal durante sua campanha, com base numa gravação divulgada pelo seu ex-conselheiro Armando Benedetti. O presidente descreveu estes escândalos forjados como uma tentativa de golpe de Estado brando, associando-os à longa história de guerra jurídica contra líderes social-democratas na América Latina.
A coalizão denominada “Pacto Histórico” termina o seu primeiro ano de mandato tentando equilibrar as exigências dos movimentos sociais que a levaram ao poder com as de uma classe política que mantém o poder legislativo. Um compromisso será essencial, o que poderá significar o sacrifício de alguns elementos cruciais da agenda de Petro para que outros possam progredir. Um plano de sucessão é também crucial para o “governo da mudança”, uma vez que os seus ganhos poderiam ser revertidos pelo próximo presidente. As eleições de 2022 foram vencidas por uma margem estreita que poderia ser anulada por um mau planejamento da campanha de 2026. Talvez inevitavelmente, no meio do fluxo constante de publicidade negativa e do aparentemente intratável entrave legislativo, os índices de aprovação de Petro recentemente começaram a cair. As eleições regionais previstas para outubro servirão como um termômetro sobre o seu mandato. A oposição conseguirá aproveitar-se das eleições para minar ainda mais as ambições reformistas de Petro, ou será que o espírito do estallido social sustentará a esquerda colombiana?
(*) Nick MacWilliam é mestre em política latino-americana pelo Instituto das Américas da University College London (UCL), jornalista e co-editor da revista Alborada.
(*) Tradução de Raul Chilliani.