Por mais de 30 anos, a esquerda vem baixando as bandeiras políticas que a distinguiam como um fator de mudança e uma reserva moral. Hoje ela é uma diversidade de miniaturas, na forma de partidos políticos, quase orgulhosa de sua irrelevância e marginalidade política. Dentro do Congresso, a esquerda passou por uma metamorfose vergonhosa que acabou tornando-a parte de uma equação em que a esquerda é igual à ultradireita.
Os casos do Peru Livre e do Juntos por Peru são exemplos patéticos de cooptação quando as convicções políticas e ideológicas são frágeis ou inexistentes.
Sua presença na Grande Marcha Nacional revela claramente sua fraqueza e, ao mesmo tempo, sua paixão obsessiva pelo “eu mesmo”. Cada um deles, com suas faixas multicoloridas, reitera incessantemente o esforço inútil de se distinguir uns dos outros, provando uns aos outros que são melhores do que os outros, sem perceber que o povo há muito os vê como incapazes de entender o valor da unidade.
Nessas condições, essa esquerda dividida e dispersa não conseguiu perceber que o processo social e político liderado pelo povo a estava literalmente engolindo. E continuará a fazê-lo enquanto a “própria fortaleza” for seu leitmotiv. A Grande Marcha Nacional lhes deu uma mensagem muito clara: é hora de superar a mesquinhez para dar lugar à construção de lideranças coletivas e individuais se quiserem ter algum papel transcendente no Peru. Uma esquerda sem líderes reconhecidos e legitimados é funcional para o domínio e a primazia da ultradireita no país.
Sem nenhuma ordem de precedência, olhando para o panorama político atual, é possível mencionar líderes políticos de esquerda que, com sucessos e fracassos, poderiam fazer parte de uma liderança coletiva que o povo veria com bons olhos.
Por exemplo, Verónika Mendoza (Novo Peru), com seu passado nas tendas do humalismo (do ex-presidente Ollanta Humala) e do castilhismo (de Pedro Castillo), continua a fazer parte do arsenal político na disputa pelo poder com a ultradireita. Duberlí Rodríguez (Unidade Popular), com um excelente histórico profissional que lhe rendeu a Presidência do Judiciário, apesar de ser criticado por suas ligações passadas com a Pátria Vermelha( Partido Comunista do Peru), é catapultado como um dos líderes que poderiam ser adicionados à lista.
Humberto Morales (Convergência Socialista), um jovem profissional com um excelente desempenho no Congresso pela Frente Ampla, sem um passado que a direita gostaria de ampliar, é um desses líderes que se encaixa em uma aposta nacional. Dante Castro, um comprovado militante do ML-10, demonstrou ter convicções políticas e ideológicas que o protegem das espreitas do oportunismo.
Hernando Cevallos Movimento pela Unidade Popular (MUP), criticado por sua fraqueza por pódios e holofotes, também é um líder que pode somar, especialmente considerando sua gestão bem-sucedida do Ministério da Saúde com Castillo como presidente. Acrescente a isso mais alguns líderes de centro-esquerda, e a hipótese assumiria elementos de realidade.
E, assim como eles, há centenas de contingentes de profissionais e políticos da primeira, segunda e terceira linha de comando, que estariam dispostos a se juntar ao esforço para mudar as coisas em nosso país. A experiência do Peru Livre e Castillo deve ser aproveitada pela esquerda que busca chegar ao poder. Não apenas a Presidência da República está em jogo, mas também as vice-Presidências, as Presidências e vice-Presidências no Congresso, os presidentes regionais e seus conselheiros, os municípios e seus conselheiros. São necessários pelo menos cinco mil cidadãos para ocupar com eficiência cargos de confiança e liderança, até o terceiro nível, no aparato do Estado.
A violência
Dina Boluarte e seu líder de fato, Alberto Otárola, dizem que “a democracia venceu” quando, na realidade, estão reivindicando o triunfo de que “não houve violência”. Ver mortos e feridos, bem como tumultos e ataques à propriedade privada são, de fato, formas de violência que devem ser reprimidas. Não houve esse tipo de violência ontem, assim como nunca houve a presença de terroristas nas marchas e manifestações desde dezembro passado. Isso é mérito exclusivo do povo.
Reprodução/ @Vero_Mendoza_F
Verónika Mendoza participou dos atos contra o governo de Boluarte no Peru
Mas, além desse fato, no Peru se respira desconfiança, desencanto e frustração como formas de violência que dilaceram a alma do cidadão. O que poderia ser mais violento do que violar o direito dos cidadãos de tomar decisões políticas? Existe algo mais violento do que dizer a eles que as ruas não são para eles, mas para aqueles que têm dinheiro? Algum cidadão poderia ficar tranquilo se eles os “terruquear” (prática da direita de relacionar a esquerda a comportamentos terroristas)? Não é uma violência do tipo mais vil governar sem ganhar eleições?
O que poderia ser mais violento do que um cenário político-social em que o cidadão não é ouvido e, ao contrário, é estigmatizado e desprezado em suas demandas? O que poderia ser mais violento do que ter um governo que não faz nada para evitar que 30% da população seja ameaçada pela fome?
É por isso que a Grande Marcha Nacional é a rejeição em massa das políticas do governo. 80% dos cidadãos repudiam Boluarte, e 90% repudiam o Congresso. Portanto, as demandas têm sentido e legitimidade: “renúncia de Boluarte”, “fechamento do Congresso”, “eleições antecipadas”, “Assembleia Constituinte” e “justiça para as vítimas” da repressão e dos massacres de dezembro de 2022 e janeiro/fevereiro de 2023.
A Grande Marcha Nacional não terminou na quarta-feira (19/07). Nas regiões, especialmente nas mais contenciosas (Puno, Cusco, Apurímac, Ayacucho, Trujillo, Ancash, entre outras), a insurgência continua. Em Lima, os protestos continuarão nos próximos dias e semanas.
Resistência, combatentes e insurgência
Esses grupos praticam métodos fascistas e fazem o trabalho sujo da extrema direita. Eles ameaçam qualquer um que ouse criticar os direitistas que os protegem e financiam. Eles têm vínculos claros com o partido espanhol Vox e são blindados pela ditadura no Peru. A Resistência, liderada por Juan José Muñico; Os Combatentes, de Roger Ayachi; e A Insurgência, de Flor de los Milagros Contreras, surgiram em meados de 2018 e 2019, quando parecia que a esquerda estava se firmando.
Esses grupos não eram visíveis como eram em lutas anteriores, e agora está claro que foram eles que desencadearam a violência que acabou com a vida de 70 peruanos. Quais partidos estão por trás desses grupos de ultradireita, quase criminosos? Em ordem de primazia: Força Popular, de Keiko Fujimori, prestes a ser presa por lavagem de dinheiro e ligações com o tráfico de drogas; Avança País, liderado pelo neoliberal Hernando de Soto; e Renovação Popular, do ultraconservador Rafael López Aliaga.
Sem muito alarde, o Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) e o meio de ultradireita que se aglomera no Congresso apoiam os métodos fascistas desses grupos com entusiasmo mal disfarçado.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Fernanda Forgerini.