Os vínculos do fujimorismo com o narcotráfico não são novos. São muitos casos conhecidos: os 170 kg de cocaína encontrados no avião presidencial em 1996 [depois se descobriu que essa atividade vinha acontecendo desde 1992]; a venda de armas às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) paga com cocaína [caso de 1999]; a relação do ditador Alberto Fujimori (1990-2000) com o narcotraficante Demetrio Chávez, codinome “Vaticano”, cujos “negócios” eram conhecidos e protegidos pelo mandatário [caso que confirma a existência de um narcoestado durante seu período]; os 100 kg de cocaína encontrados em 2013 na sede da LIMASA, empresa de Kenji Fujimori, entre outros. Todos esses episódios geraram repercussão relativa, mas nenhuma condenação real, pois sempre aparecia a blindagem política do fujimorismo no Congresso para evitar punições.
O caso que comentaremos hoje, um dos maiores já acontecidos no Peru, os protagonistas principais são Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori e principal líder do partido fujimorista Força Popular, e Joaquín Ramírez atual prefeito da cidade de Cajamarca e um dos principais empresários ligados ao fujimorismo.
Era 2011. O piloto peruano-norteamericano Jesús Vásquez recebeu a visita de Ramírez para receber os US$ 15 milhões que Keiko enviou para serem investidos em negócios nacionais e internacionais. Em outras palavras, recebeu a tarefa de lavar aquele dinheiro recebido. Porém, Vásquez não conseguiu cumprir a missão em Miami [ao menos isso disse em seu depoimento], então se encontrou com Ramírez para combinar um esquema para lavar aquele montante investindo em sua empresa de peças hidráulicas, selando assim a sociedade entre ele e a líder dos Fujimori [que foi firme e duradoura, como provam as investigações].
Já se passaram muitos anos desde 2014, quando se encontrou a primeira evidência sobre a relação do narcotráfico e suas “lavanderias” com o partido Força Popular, de Keiko Fujimori. A estrutura do esquema está consolidada sobre três pilares. O primeiro era o processamento e negocio da cocaína, dirigida por Joaquín Ramírez. O segundo pilar era conformado pela rede de universidades Alas Peruanas, da qual Ramírez era reitor. O terceiro elemento era o poderoso esquema de proteção política que o fujimorismo garantia no Congresso.
Aquela blindagem não foi suficiente para que, em 11 de março de 2023, por decisão de juízes e procuradores que se mantêm como reserva moral do país, fossem confiscados cerca de 300 bens [171 imóveis, 111 carros e 7 aviões monomotores] em 12 regiões peruanas diferentes.
Na sentença, Joaquín Ramírez, Keiko Fujimori e outras figuras ligadas ao clã eram acusados de lavagem de dinheiro. Esta é a terceira vez que Keiko enfrenta uma acusação deste tipo. O valor total confiscado supera a casa de US$ 1 bilhão, e se especula que ainda há muitas outras propriedades a serem descobertas.
Laboratório e comercio de drogas
Em 2014, Joaquín Ramírez foi acusado de lavar US$ 7 milhões, mas o apoio político do fujimorismo, com sua avassaladora maioria no Congresso, ajudou a manter o processo adormecido até 2017, quando o procurador Wilson Salazar assumiu o caso, apesar das pressões políticas para que ele fosse arquivado. Desde então, o caso avançou com uma lentidão conveniente ao empresário, mas com o promotor Salazar conseguindo driblar a blindagem política vez ou outra, e conseguindo encontrar algumas provas substantivas, como os documentos que confirmam que suas empresas serviram para lavar pouco mais de US$ 138 milhões de dinheiro do narcotráfico.
Twitter / Ojo Público
Keiko Fujimori e o empresário Joaquín Ramírez enfrentam processo na Justiça por lavagem de dinheiro e possíveis vínculos com o narcotráfico
O negócio da droga ganhou importância no Peru nos Anos 90, quando o empresário Fidel Ramírez fundou a rede de universidades Alas Peruanas, que tinha vinculações com os produtores de droga do Vale de Huallaga. Claro que Ramírez não deveria ter vínculos visíveis e muito menos formais com esse tipo de coisa, por isso decidiu usar o seu sobrinho Joaquín como intermediário. O jovem, naquele então, controlava um obscuro negócio que oferecia transporte público através de kombis em algumas cidades do país. Foi assim que Joaquín Ramírez passou a controlar o sujo e arriscado esquema das universidades, mas claro, sempre sob a supervisão do tio.
Lavanderia de nivel universitário
As Universidades Alas Peruanas eram a principal operadora da lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico no país. Com sua atividade acadêmica convenientemente amplificada e “reconhecida” pelos grandes meios de comunicação que ela patrocinava, a empresa consolidou uma imagem perante a sociedade que permitia atuar quase que com total impunidade, além de contar com os aliados políticos fujimoristas no Congresso.
Além disso, a Universidade de Fidel e Joaquín Ramírez era promovida ativamente por Keiko Fujimori na bancada do Congresso, o que incluía reuniões periódicas entre Fidel, Keiko e Vladimiro Montesinos [o famoso operador político fujimorista que desatou a crise de 2000, que levou ao fim da ditadura].
Vale lembrar que, naquela segunda metade dos Anos 90, Keiko já era a primeira dama do Peru. Em 1994, sua mãe, Susana Higuchi, acusou o ditador Alberto de torturá-la e tentar assassiná-la. A jovem Keiko, que tinha 29 anos naquele então, ficou do lado do pai. Meses depois, ela assumiu o “cargo” deixado pela mãe.
Também participavam do esquema as irmãs Nancy e Maribel Ramírez, filhas de Fidel Ramírez e que trabalhavam com Joaquín na administração as universidades e no que, gradualmente, se transformou na matriz do que se poderia chamar de “sistema nacional de lavagem de dinheiro”.
Blindagem política
Tamanho é o poder político de Keiko Fujimori que ela não teve medo de dizer ameaçar publicamente a atual presidente Dina Boluarte, exigindo que ela e seus ministros parem de fazer insinuações na imprensa sobre o caso da lavagem de ativos e sua vinculação direta com Joaquín Ramírez.
Os vínculos entre Keiko e Ramírez estão mais que provados. Primero, está documentado o fato de que Força Popular recebeu financiamento das empresas de Ramírez em suas campanhas eleitorais. Um dos aportes é de cerca de sete milhões de soles peruanos (R$ 9,2 milhões de reais) considerados a ponta do iceberg de numerosos “apoios” financeiros. Segundo, Força Popular mantinha duas sedes que eram propriedades de Ramírez, em contratos de aluguel estabelecidos quando Keiko era secretário geral do partido. Terceiro, Keiko fez negócios imobiliários com sócios de Ramírez em Cajamarca, bastião político do empresário.
Dina e Keiko perderam sintonia?
Após a decisão judicial de março passado, alguns ministros de Dina Boluarte “comemoraram” a sentença dizendo o atual governo “está lutando contra a lavagem de dinheiro”. Um deles acrescentou, com essa arrogância primária que caracteriza esta administração, que “as investigações seguirão em frente, contra tudo e contra todos”. Apesar de essa declaração não ser mais que uma bravata, Keiko a considerou uma “alta traição” de Dina ao compromisso de “ajuda mútua” que ambas fizeram em fevereiro.
A reação da presidente foi imediata: passou sermão no chefe do Conselho de Ministros, Alberto Otárola, com uma declaração pública, e este pediu desculpas, também diante das câmeras, quase com lágrimas nos olhos, e afirmando que nenhum ministro pode comentar o processo contra Ramírez e Fujimori, porque “é preciso respeitar a divisão de poderes”.
Pelo que vemos nos noticiários, a retificação de Otárola não será suficiente para curar as feridas causadas pela “alta traição” de Dina e seus ministros. Em função disso, o Peru deve conhecer, em breve, novos episódios de tentativas de impeachment e manobras parlamentares como os que estamos acostumados nos últimos anos. Tudo parece indicar, entretanto, que os fogos artificiais entre o Executivo e o Legislativo seguirão sendo a melhor forma de manter o “apoio mútuo” entre Keiko e Dina.