Os sete golpes militares ocorridos na África nos últimos três anos revelam que algo está errado no continente para o qual os países ocidentais costumavam observar de longe e com certo desdém. Entre esses levantes, os casos mais notáveis são:
1) O golpe militar no Mali: em 24 de maio de 2021, as forças armadas do país derrubaram e capturaram o presidente Bah N’Daw e associados próximos. O Conselho Nacional de Salvação do Povo (CNSP) propôs novas eleições para 2022, mas ainda não foram realizadas. Em 18 de junho de 2023, via referendo, foi decidida a modificação da Constituição estabelecendo a bicameralidade, fato que abriria caminho para as eleições presidenciais, agora programadas para 2024.
A junta militar reivindica a sua luta contra a corrupção dos governos anteriores, apoiados pela França. Entre as medidas tomadas está o reconhecimento de 13 dialetos locais, que passaram a ser línguas oficiais, enquanto o francês foi classificado como “língua reservada para ambientes de trabalho”.
Para Charles Michel, do Conselho Europeu, o que aconteceu no Mali pode ter um “efeito desestabilizador em toda a região do Sahel, na África Ocidental”, e apelou ao regresso ao Estado de direito.
O Sahel envolve 13 países, que totalizam cerca de 400 milhões de habitantes. Geopoliticamente falando, é um barril de pólvora que conta com uma presença ativa dos grupos jihadistas.
2) O golpe militar em Guiné: em 5 de setembro de 2021, as Forças Especiais do Exército tomam o poder, capturando e aprisionando o presidente deposto Alpha Condé, que buscava seu terceiro mandato.
O comandante militar Mamady Doumbouya, entre suas primeiras medidas, anunciou a derrubada da Constituição e dissolveu o Parlamento, com a justificativa de que era preciso “tomar decisões rápidas a favor do povo, que nunca usufruiu dos recursos naturais” que o país possui, citando como exemplo a bauxita.
O discurso da junta militar de Guiné se assemelha ao de outros governos africanos onde ocorreram golpes militares recentemente.
3) O golpe militar no Sudão: em 25 de outubro de 2021, as Forças Armadas dissolveram o governo de Abdallah Hamdok, cujo apoio político e institucional era uma frágil aliança de grupos militares e civis que já tinham chegado ao poder por um golpe militar, em 2019 – na época, derrubando o ditador Omar al-Bashir, que estava no poder há três décadas, com a complacência dos sucessivos governos da França, incluindo o de François Mitterrand.
Tempos depois, um grupo de militares, liderado pelo general Abdel Fattah al-Burhan, assumiu efetivamente o controle total do poder político, dissolvendo o Conselho Soberano e o governo de transição que comandado por Hamdok.
4) O golpe militar em Burkina Faso: em 23 de janeiro de 2022, as Forças Armadas depuseram o presidente Roch Kaboré.
O presidente interino que assumiu após o primeiro golpe, Paul Henri Sandaogo Damiba, acabou sendo afastado em 30 de setembro do mesmo ano, através de um segundo golpe levado a cabo por um comando antiterrorista chamado “Cobras”, que levou o capitão Ibrahim Traore a assumir o poder, que abandonou o discurso de realizar eleições em 2024 para defender a aplicação de medidas que visam resolver a crise de segurança no país.
5) O golpe militar no Níger: 26 de Julho de 2023, a Guarda Presidencial promoveu uma insurreição militar liderada pelo general Abdourahamane Tchiani, depondo o “regime democrático” de Mohamed Bazoum.
Quase imediatamente depois, as Forças Armadas nigerinas apoiaram a prisão de Bazoum. Desde então, a junta militar liderada por Tchiani governa o país, o que significa um problema para a França, que perde o acesso às grandes reservas de ouro e urânio que retirava da região.
Twitter / Brice Oligui
Gabão foi o caso mais recente de levante militar na África
Para os europeus, o que aconteceu no Níger, somado aos casos de Mali e Burkina Faso, foi um “duro golpe” à presença francesa na África Ocidental, especialmente porque fortaleceu o discurso contra a presença militar francesa e a própria política de Emmanuel Macron.
Em consequência, foi suspensa a validade da Constituição, cancelados os acordos de cooperação militar com a França e rejeitada qualquer intervenção da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao).
6) A ameaça de golpe militar na Etiópia: em 4 de agosto de 2023, o governo central do país declarou “estado de emergência” devido ao aumento da violência desencadeado pelo confronto entre os grupos armados ilegais “Fano” e “Tropas Etíopes”, na região de Amhara. “A lei e a ordem foram postas em risco”, afirmaram as autoridades. Diante desse cenário, o grupo “Fano” foi dissolvido, agora sem a proteção do governo regional.
Paralelamente, foi ordenada uma ofensiva militar em Tigray, em resposta à tomada das bases militares por parte da Frente de Libertação do Povo, o que foi considerado como uma tentativa de golpe. Segundo o governo, “o país enfrenta um grave risco para a sua existência, soberania e unidade” para o qual é necessário “proteger a integridade do país” dos seus inimigos internos e externos. Apesar das medidas, a guerra interna continua.
7) O golpe militar no Gabão: em 30 de agosto de 2023, as Forças Armadas depuseram o “vencedor” das eleições presidenciais, Ali Bongo Ondimba. Foi a terceira vez que ele “foi eleito”, fato inaceitável para os militares devido aos indícios de fraude durante o processo. O governo de transição resultante é liderado pelo general Brice Oligui Nguema.
Tal como em casos anteriores, a comunidade internacional condenou o golpe, apesar de que nunca havia mostrado indignação com uma “democracia” de baixa qualidade e governos que condenavam o país à fome, com quase 80% da população sofrendo com a insegurança alimentar (cerca de 3 milhões de habitantes).
O Gabão é em uma nação rica em petróleo (US$ 5 bilhões arrecadados anualmente), manganês e ouro, o que torna ainda mais impressionante o fato de que a maioria do seu povo viva em situação de extrema pobreza. A “democracia” que acaba de cair nada mais era do que o sistema que permitia aos franceses continuarem a explorar os recursos naturais a custo baixo, através de empresas como a Eramed.
Elementos transversais em todos os “golpes”:
Alguns aspectos chamam a atenção por terem sido observados em todos os exemplos mencionados acima.
- Discurso enfatizando a vontade de acabar com a hegemonia decadente do Ocidente em seus países.
- Ações derrubaram governos “democraticamente” eleitos, porém leais ao imperialismo francês.
- A “Comunidade Internacional” reagiu sempre da mesma forma, exigindo “respeito aos direitos humanos e à institucionalidade democrática”. A solidariedade do Ocidente não é com os povos e sim com as tiranias “democraticamente eleitas” em suas ex-colônias.
- Medidas contra a exploração dos recursos naturais por multinacionais europeias, especialmente as francesas, sem benefício para o país, foram as primeiras a serem tomadas.
- A ruptura de relações com a França também esteve entre as primeiras medidas adotadas. Da mesma forma, em todos os casos, os novos governantes não tardaram em manifestar sua vontade em estabelecer melhores relações com as potências como China e Rússia, que promovem o multilateralismo.
- Houve manifestações massivas de respaldo aos “golpistas”, um sinal de que a população está cansada dos tiranos “democraticamente eleitos” e protegidos pela França.
- Ocorreram em países que pertencem à África Subsaariana, uma das regiões mais pobres e instáveis do mundo.
Conclusão
A democracia ocidental, tal como a conhecemos, já não é o paradigma da cidadania global. Juntamente com o multilateralismo em pleno desenvolvimento, a democracia tem sido submetida a uma revisão do seu conteúdo, sua lógica e seus fundamentos. A África é apenas o início deste processo, que será longo e com complexidades difíceis de prever.