Durante os últimos três meses de protesto popular no Peru, as rondas camponesas tiveram uma participação decisiva e de liderança. Por isso, seus membros têm sido perseguidos e atacadas, são a maioria dos 70 mortos pela ação policial durante os atos (muitos desses casos descritos como crimes contra a humanidade) e responsáveis pelas ações que fazem este movimento adquirir matizes de rebelião.
As rondas camponesas são um grupo de autodefesa dos movimentos sociais do interior do Peru. Não precisam de financiamento de ninguém, pois sabem como se auto sustentar e apoiar suas lutas. Nos últimos meses, viram seu desenvolvido senso de solidariedade e convicção na força da ação coletiva serem colocados à prova.
Organizaram marchas de centenas de quilômetros, partindo de todas as regiões do Peru, até a capital do país, para participar de atos contra a ditadura civil-militar, em dois episódios que ficaram conhecidos como as “grandes marchas a Lima”, ou “a tomada de Lima”.
Estes últimos dias, após a brutal repressão do povo organizado, são de refluxo e reorganização, de avaliação e ajustes táticos da mobilização popular, como acontecerá no encontro programado para a cidade de Ayaviri, berço dos processos descolonizadores, nos dias 15 e 16 de abril, onde mais de mil delegados das rondas camponesas se reunirão para planejar a terceira “grande marcha”, prevista para chegar à capital peruana em julho.
Como surgiram as rondas?
O movimento foi visto em ação pela primeira vez em Cajamarca, região do norte do Peru, no início dos anos 70. Formalmente, porém, se constituíram como organização em 1976 e logo se estabeleceram como um componente fundamental da “organização de defesa das comunidades”.
Seu principal objetivo, naquele então, era combater pequenos casos de roubo de terras e de mercadorias, exercendo o direito consuetudinário de “cuidar do seu território”. Com essa mesma lógica, organizam-se os Guardiões das Lagoas, também surgidos em Cajamarca e depois difundidos por todo o Peru.
Ainda que se possa dizer que as rondas são organizações de raízes peruano-andinas, sabe-se da existência de entidades semelhantes ou análogas em outros países. Por exemplo, a Polícia Comunitária no Estado de Guerrero, no México, ou a Guarda Tribal do povo indígena Nasa, no Valle del Cauca, na Colômbia.
Em toda parte, elas surgiram porque os movimentos sociais não se veem representados pelo Estado, que supostamente deveria protegê-los – como estabelecem, em letra morta, as Constituições de nossos países. Em vez disso, os direitos das comunidades camponesas vêm sendo repetidamente violados perante um Estado sempre ausente.
As rondas, inicialmente focadas em Cajamarca, região frequentada por “piratas” e “empresas extrativistas”, foram replicadas em todo o país nos anos 80, especialmente por sua eficácia no combate ao roubo, embora posteriormente tenham escalado para a defesa dos direitos da Pachamama (“mãe terra” em idioma quéchua) e da Yakumama (“mãe água”).
Hoje é reconhecida a presença de 300 mil patrulhas agrupadas em 8 mil regiões de patrulhamento em todo o país.
As rondas e sua relação com a Pachamama e a Yakumama
As rondas, em permanente processo de redefinição alimentado pela prática cotidiana, são consideradas democráticas, patrióticas, justas e moralizadoras. A sua organização e objetivos atuais transcendem a luta contra o roubo, pois escalaram para a luta frontal contra o extrativismo, para depois se tornar um sujeito ativo em processos de construção de alternativas descolonizadoras na América Latina.
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Grupos dos movimentos sociais do interior peruano se baseiam em fundamentos filosóficos andinos
A luta contra o extrativismo não é apenas a rejeição à imposição de projetos extrativistas de forma violenta, não consensual, por meio da qual continua a mercantilização e privatização da natureza e, por isso, a destruição da Mãe Terra e da Mãe Água é cada vez mais evidente.
Os mais afetados desses processos são, sem dúvida, os povos indígenas e camponeses, que vivem em territórios onde o extrativismo é desenfreado. Os casos de Conga, Tía María e Las Bambas, todos nos Peru, são emblemáticos e mostram a atualidade da questão e as profundas feridas causadas à natureza produzidas pelas empresas privadas.
As rondas e a descolonização
É óbvio que as “independências” não foram capazes de descolonizar nossos países em muitos níveis da atividade humana. Continuamos com os padrões coloniais e imperiais no que diz respeito ao poder econômico e político, ao exercício do direito, à forma de pensar e compreender a nossa realidade, à alimentação e prática do conhecimento, etc.
A descolonização é, em síntese, arbitrária. O questionamento das estruturas fundamentais da sociedade atual, organizada e operada sob cânones estranhos aos nossos. Essa é a visão das rondas camponesas.
A visão do “Sumac Kausay” (cinco fundamentos da “plenitude da vida”, segundo os povos indígenas andinos) opõe-se à visão ocidental do desenvolvimento capitalista, defendendo que o homem e a natureza devem tem uma relação de harmonia, de respeito. “Sejamos livres como o vento, como a água”, diz um desses princípios.
Para os povos andinos, a síntese é a luta por transformações no plano epistêmico que condiciona a forma de compreender nossa realidade, pelo resgate da ética na prática política. E para as rondas camponesas, é o questionamento das estruturas coloniais, lógicas e significados da institucionalidade vigente, da colonialidade do poder, entendida como um conjunto de padrões de dominação de alguns setores sociais sobre outros.
Também, sem pôr fim ao conjunto de planos e aspectos da descolonização, é o ato de questionar o direito (edifício legal e jurídico) adquirido de fontes europeias e norte-americanas, e restaurar os direitos consuetudinários dos povos originários.
O papel das mulheres nas rondas camponesas
O papel da mulher nas rondas foi e é transcendental na luta e na resistência, mas invisibilizado justamente pela força do colonialismo que prevalece sobre o conhecimento e as comunicações. Dada a sua dedicação à agricultura, pecuária ou comércio, são elas que percebem perfeitamente os danos que o extrativismo causa na Pachamama e, portanto, na vida e na saúde de seu povo, seus filhos.
É nesses espaços que os saberes ancestrais referidos à Pachamama e à Yakumama ganham plena validade e visibilidade. As mulheres que formam parte das rondas acrescentam valores de solidariedade, reciprocidade e organização comunitária como espinha dorsal da sua atuação, impensáveis em espaços sob dominação ocidental, onde imperam o egoísmo e o individualismo.
Os espaços que as rondas de mulheres camponesas constroem e dinamizam são onde elas se veem representadas e reivindicam seus direitos como mulheres, parte de uma amplo projeto de descolonização que impacta o patriarcado.