Enquanto era membro do gabinete de Pedro Castillo, como ministra de Desenvolvimento e Inclusão Social até novembro de 2022, assim como nos dias prévios à terceira intentona de impeachment contra seu presidente, Dina Boluarte foi parte das negociações que buscavam evitar os 87 votos necessários no Congresso para destituir o então presidente no dia 7 de dezembro de 2022. Ela sabia perfeitamente que, cedo ou tarde, viria a “sucessão constitucional”, que na sua intimidade, ela degustava com prazer. Pareciam sinceras as lágrimas que derramou pelas vítimas dos protestos populares contra o ex-presidente golpista Manuel Merino, em novembro de 2020. Porém, hoje soam como “lágrimas de crocodilo”, da mesma mulher que justifica, cínica e macabramente, o assassinato de 60 peruanos “em defesa da democracia”. Essa democracia que ela mesma destrói com tanto esmero.
Boluarte também sabia muito bem que a tal “sucessão constitucional” vinha hipotecada sem condições pela DBM [a sigla original em espanhol é DBA, de “derecha bruta e achorada”, o que em português do Brasil seria “direita burra e malandrona”], que a colocou sob controle logo após a sua posse. Era um custo que ela estava disposta a pagar com tal de ser presidente, mesmo que seu destino fosse se transformar em uma marionete a serviço dos interesses da ultradireita política e empresarial.
A senhora Boluarte, ensaiando um jogo próprio, buscava apoio de um setor da direita empresarial que despreza os seus “representantes” no Congresso, por sua inaptidão. Imaginava, a partir de um pensamento simplista, que essa “contradição” poderia ser capitalizada a seu favor, ignorando que, para a direita o que importa são os benefícios econômicos e não o reconhecimento de valores democráticos com os que, nesses momentos, ela alucinava. Ao final ela acabou entendendo que sua permanência no Palácio Pizarro [sede do governo peruano] não dependia dela, e sim da direita política e empresarial apoiada pelas forças armadas e policiais, dispostos a suplantar a democracia com uma ditadura civil-militar disfarçada de “constitucionalidade”.
Desde sua posse até estes sofridos dias, ela tem demonstrado desconhecimento do ofício político, ignorância do papel de um chefe de Estado e carência de liderança, o que, obviamente, não lhe permitem ter um desempenho razoável. Suas aparições públicas diante de cada novo protesto popular deixavam em evidência a sua absoluta incompreensão do que ocorria no Peru.
O “terruqueo” como argumento
O “terruqueo” é uma expressão tipicamente peruana, que resume o argumento da direita para tentar desqualificar os movimentos populares, acusando os cidadãos e coletivos de envolvimento com ações terroristas ou com atos de apologia ao terrorismo, geralmente associando-os ao grupo Sendero Luminoso, que atuou no Peru nas duas últimas décadas do século passado.
Aparentemente aposentado durante o governo de Castillo, o “terruqueo” voltou com Dina Boluarte, que recolocou o termo no vocabulário oficial e alimentou a narrativa criada por suas agências de inteligência. A repressão indiscriminada, a declaração de estado de emergência em quase todo o país, suspendendo direitos fundamentais, tem como princípio a ideia de que todos aqueles cidadãos que participam de protestos devem ser indiciados como “terroristas”. É preciso, segundo o Ministério do Interior [encarregado da repressão], acabar com os “terrucos” que estão “incendiando o país”. Essa estratégia não busca apenas intimidar a população como também erradicar a condição humana desses acusados de terrorismo, para dar algum sentido ao discurso de que é preciso liquidá-los fisicamente, pois isso seria “o melhor para a democracia”.
Em harmonia com esta narrativa, a mídia que demonizou Castillo hoje santifica Dina Boluarte e as Forças Armadas. Ainda assim, diante do horror e a violência de Estado que abala o país, bem como perante a heroica persistência do protesto popular com sinais de rebeldia, muitos “opinionistas” e alguns meios de comunicação que defendem ferrenhamente o governo da atual presidente e o Congresso liderado por Willians Zapata, começam a mudar de opinião, já que não podem ignorar o massacre que está ocorrendo no Peru.
Pessoas como Álvarez Rodrich e Mirko Lauer, formadores de opinião dedicados a confundir a população e justificar crimes como parte do respeito ao “princípio da autoridade”, hoje recuam e criticam a política de Estado que massacra e faz “uso desproporcional da força pública”. Não é possível que continuem acobertando a responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo nos “crimes de genocídio e crimes contra a humanidade”, como indicam as denúncias apresentadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por grupos de advogados que decidiram dizer à senhora Boluarte que a justiça chegará mais cedo ou mais tarde.
Ver Jorge Montoya ou Alejando Cavero, deputados da República por dois minipartidos de extrema-direita, gritarem que “estamos numa situação de guerra”, ou de “vida ou morte”, nada mais é do que o grito gutural dos fascistas diante de protestos legítimos de cidadãos peruanos, que não aceitam a ditadura compartilhada por Congresso, Executivo e Forças Armadas. Aqui, obviamente, os apelos de dona Boluarte por “paz” perdem o sentido.
Já são 60 vítimas, peruanas e peruanos massacrados, que refletem um estado que não é nada democrático e governo com nenhuma vontade de diálogo. Cada intervenção pública da senhora Boluarte é uma reiteração de sua oferta: a repressão, ainda que haja mais mortes, com as quais se forma um estado de terror, perseguição e criminalidade. Nesse cenário, o dilema do povo rebelde continua sendo o mesmo: aceitar a ditadura civil-militar ou insistir na luta.
Presidência do Peru
Dina Boluarte aceitou o apoio da ultradireita política e empresarial e das Forças Armadas para se manter no poder
A imprensa concentrada e o jaguncismo político
O papel da imprensa no Peru é o que mais se aproxima de uma bomba de napalm na consciência do cidadão. Tem o poder de transformar uma verdade em mentira, ou vice-versa, sem que ninguém reclame de tal abuso de poder. A denúncia apresentada há 10 anos na CIDH contra a mídia concentrada só recebeu resposta dias atrás, dando alguma esperança de que a demanda será atendida. Não sabemos que tipo de modificação poderia trazer, mas pelo menos há um sinal de que os anseios estão pleiteados.
Enquanto não houver mudança na estrutura do poder da mídia, alimentada sobretudo pela publicidade estatal, ela continuará agindo impunemente. Nas eleições de 2021, ela jogou inteiramente a favor da candidatura de Keiko Fujimori, e perdeu. A consciência cidadã e o sentimento antikeiko mostraram seu poder. Mas daí a respeitar os resultados eleitorais há um longo caminho a percorrer. Como já vinha anunciando, o fujimorismo e toda a direita, com o apoio maciço da imprensa concentrada, declararam guerra a Pedro Castillo desde o momento em que o Departamento Nacional de Processos Eleitorais anunciou sua vitória. Não apenas alegaram que houve fraude, tentando transformar essa mentira em verdade, mas propagaram outro discurso ainda mais daninho, ao sugerir insistentemente que o comunismo havia chegado ao poder.
Nos 18 meses de mandato de Castillo, a publicidade estatal na mídia concentrada caiu a níveis nunca antes vistos, tanto que vários meios estiveram à beira da falência. O governo decidiu não pagar editoriais complacentes e cancelou o “jabá” que alimentava o orçamento da imprensa concentrada e o pagamento a jornalistas que transformavam a profissão em uma forma brutal e cruel de jaguncismo político.
Essa postura governamental parecia uma “vingança” de Castillo, em resposta à crueldade com que trataram sua condição de homem do campo. No auge da loucura, alguns meios jogaram até a família do ex-presidente naquela máquina de esmagar dignidades.
Assim que Dina Boluarte chegou, a mídia concentrada voltou a receber suculentos contratos publicitários estatais, nos mesmos valores ou até maiores que os que havia antes de Castillo. Então, como num passe de mágica, toda a mídia concentrada aplaudiu enlouquecidamente Dina como a “sucessora constitucional”, enquanto o corrupto e desacreditado Congresso era mostrado como o garantidor da democracia. Não importavam os crimes contra a humanidade cometidos durante os protestos, desde que fosse entregue o oxigênio orçamentário que necessitavam.
O golpe e o contragolpe
O “golpe de Estado” que Pedro Castillo tentou no dia 7 de dezembro foi, na verdade, o argumento perfeito que a direita fascista não dispunha até então para seu impeachment. O Congresso, repentinamente fortalecido, respondeu ao golpe fracassado com um contragolpe que que se aproveitou das circunstâncias, sem deixar de ser um claro ato de mediocridade, estupidez, ódio e racismo. Para isso, contaram com a cumplicidade sincronizada da liderança militar, que tornou público seu apoio ao golpe parlamentar enquanto o ex-presidente era capturado antes que pudesse se refugiar na Embaixada do México.
O golpe parlamentar que reclamava para si a “defesa da democracia” esqueceu-se das formalidades básicas tanto para proceder ao golpe como para capturar Castillo. A única coisa que importava era cumprir sua ambição de permanecer no Congresso até 2026, mesmo assumindo o custo de ter Dina Boluarte como presidente.
Não demorou muito para que o povo se fizesse ouvir nas ruas e praças dizendo que não aceitava o golpe parlamentar, muito menos Dina Boluarte como presidente. Embora a “sucessão constitucional” lhe desse um aspecto legalista, o golpe não demorou a mostrar suas características de ditadura civil-militar cuja legitimidade havia atingido o fundo do poço. Militarizar o país, decretar estado de emergência e toque de recolher em grande parte do território nacional, revelou que a democracia morria, enquanto a repressão, a criminalização dos protestos, o lawfare contra organizações e lideranças políticas tornavam-se a nova “normalidade”. .
A reação popular não pedia apenas a liberdade de Castillo, mas era uma ação de massas que exigia respeito ao seu voto, seu direito de escolha. Foi uma resposta às ameaças, intimidações e intolerâncias de Dina Boluarte e das Forças Armadas e policiais que a protegeram, apoiando seu governo.
O Congresso, diante das evidências de que a manifestação popular ameaçava sua própria existência, não teve outra alternativa senão aceitar as eleições antecipadas, não para 2023, como pediam as ruas, mas para abril de 2024, como Dina Boluarte havia proposto inicialmente. O povo não aceitou essa data e continuará a exigir que se a data seja em 2023. Haverá mais dias de tensões políticas que, colocarão frente a frente as forças do povo e as da ditadura civil-militar.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Victor Farinelli.