O que temos no planeta desde muito antes de 2008 é uma crise prolongada e multidimensional (permacrise), cuja profundidade revela processos de mudanças estruturais na ordem mundial sob diversas formas e dinâmicas que se revelarão nos anos seguintes.
Não é só a inflação que, paradoxalmente, se alimenta de políticas monetárias erráticas. Nem é apenas a crise energética, alimentar ou geopolítica que colocam em xeque a governação global. É, acima de tudo, a incapacidade do coletivo global e dos seus governos de enfrentar essas “punições” de uma forma estrutural.
A guerra em território ucraniano, para além do confronto bélico, revelou interesses geopolíticos e questões relativas ao domínio mundial onde o poder militar é um componente. Está em jogo o poder da tecnologia e a sua utilização para disputar hegemonias, ou para a colocá-la a serviço da humanidade. Esta contradição será resolvida de forma associada à configuração da correlação de forças no tabuleiro geopolítico global.
Vejamos, então, sem qualquer ordem de prioridade ou pretensão de exaustividade, as “pragas” dos nossos tempos:
1. Recessão econômica com inflação a nível global
Neste momento, não há dúvida de que a economia mundial, depois de ter estado numa fase de “desaceleração” durante um período prolongado, está prestes a entrar em um período recessivo que, para alguns analistas, poderá revelar-se superável no curto prazo. Com exceção da China, os dados oferecidos pelos organismos multilaterais demonstram que o PIB do planeta apresenta sinais inequívocos de crescimento raquítico (média de 1,5%) ou negativo, em alguns casos. Isto não é apenas um esfriamento, é uma recessão, com todas as suas consequências sobre o emprego e a renda, e que pode ser agravada pelo anunciado abrandamento das economias da China, dos Estados Unidos e da União Europeia em 2023, segundo previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Esta situação não é apenas consequência da guerra na Ucrânia e das absurdas sanções ocidentais contra a Rússia, mas também do sistema capitalista que sofre o golpe que resultou da tendência descendente da taxa média de lucro, que parece irreversível. As guerras e a competição feroz pela hegemonia mundial são apenas formas brutais que procuram distorcer a máxima de que “o capitalismo carrega as sementes da sua própria destruição devido à sua sede insaciável de mais-valia e lucro” (Karl Marx).
Nesse sentido, a guerra é inerente ao capitalismo como mecanismo de resolução de crises econômicas ou, como é frequentemente chamada na literatura liberal, como forma de autorregulação do sistema capitalista. O destacamento militar à escala global inclui sanções como as que os Estados Unidos impõem a Rússia, Venezuela, Cuba e até à China, independentemente da desordem gerada nos mercados globais e nas cadeias de abastecimento. O importante é restaurar o vigor e a primazia do capitalismo na ordem internacional.
Apesar disso, a recessão global ainda continua. Se não fosse a China, a média de 1,5% acima mencionada seria ainda menor. Provavelmente, ela será mantida este ano e também no próximo, se o esfriamento das economias do Norte continuar. Este desempenho, que seguirá vigente em 2024, se insere no longo ciclo de crise que começou antes de 2008, apesar de organizações multilaterais como o FMI e o Banco Mundial tentarem gerar um clima de otimismo com estimativas menos desanimadoras, mas longe da realidade.
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Disputa entre China e Estados Unidos pela hegemonia global tende a se intensificar nos próximos anos
Por outro lado, a inflação continuará a ser um fator de instabilidade na oferta e na procura globais. Nem mesmo os Estados Unidos, que se vangloriavam de ter a situação “sob controle”, conseguem baixar as suas taxas ao nível que tinham antes da pandemia. A situação é ainda mais crítica se observarmos que a política monetária norte-americana tem apresentado resultados contraproducentes. Tudo parece indicar que o custo da energia estaria na base dos processos inflacionários, que não podem ser controlados como esperam os timoneiros da Reserva Federal e dos Bancos Centrais em todo o planeta. Segundo o FMI, 2023 poderá terminar com uma inflação de 8%, como ocorreu em 2022.
2. Disputa pela hegemonia mundial
A guerra que a Rússia trava contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nada mais é do que a ponta do iceberg que esconde as mais diversas e complexas formas nas quais se desenvolve a disputa pela hegemonia mundial. A narrativa de que se trata de uma invasão dos “maus” (russos) contra os “bons e pequenos” (o governo fascista da Ucrânia) nada mais é do que uma tentativa cínica de tapar o sol com um dedo. Neste cenário de guerra, não está em jogo apenas o poder das armas, mas também o poder de controle global da produção e da logística ligada ao fornecimento de alimentos, energia e tecnologia.
Não é mais possível esconder o desespero dos Estados Unidos e seu outrora indiscutível poder no planeta. Embora sem expressões concretas, a China está presente no conflito bélico e, portanto, como ator principal na disputa pela hegemonia e controle do tabuleiro geopolítico global. Embora isto possa sugerir que o mundo caminha para a bipolaridade, o que está acontecendo não parece se aproximar dessa perspectiva, uma vez que o multilateralismo e as suas múltiplas manifestações tornam-se cada dia mais válidos e reivindicam para si, em linha com as correlações móveis das forças globais, parte do poder mundial.
É aqui que o Brics, o G77+China, o G20, a Organização de Cooperação de Xangai, entre outros organismos podem se tornar protagonistas da fragmentação (protecionismo) que buscarão o protagonismo coletivo e individual sem, portanto, verem a necessidade de romper “formalmente” com o novas potências (EUA, China, Rússia, Índia, Brasil, Turquia, Arábia Saudita, etc.). Pelo contrário, cada acordo bilateral e mutuamente conveniente será também um tributo ao multilateralismo onde todos pensam que irão ganhar alguma coisa, embora a China tire claramente vantagem onde quer que coloque o seu dinheiro, apesar dos esforços dos Estados Unidos no sentido contrário.
Nos próximos artigos, abordarei as demais “pragas” da atualidade.