Esta é uma continuação dos artigos publicado em 23 e 30 de setembro, nos quais foram analisados cinco assuntos que estão entre os mais importantes para a humanidade no momento atual: a recessão econômica com inflação a nível global, a disputa pela hegemonia mundial, a desigualdade e pobreza sem precedentes, a insegurança coletiva e o congelamento da transição energética.
Analisemos agora outros três desafios cruciais para o futuro do planeta:
6. Autoritarismo crescente e precarização da democracia
Não só a economia mundial está em recessão, mas também a “democracia” está em crise. Em muitos países, o sistema democrático está sendo substituído por regimes autocráticos, que exercem autoridade sobre bilhões de cidadãos no planeta. Segundo o observatório suíço V-Dem, os “avanços democráticos” alcançados nos últimos 35 anos estão vem sendo derrubados.
O nível de democracia para o cidadão global médio em 2022 é semelhante ao que era em 1982. Na região Ásia-Pacífico, o cenário remonta ao que havia em 1978, enquanto na Europa Oriental e na Ásia Central, bem como na América Latina e no Caribe, voltou aos níveis do fim da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a liberdade de expressão se deteriora e os meios de comunicação social são censurados, tal como as organizações da sociedade civil. As eleições estão se tornando cada vez menos transparentes e os resultados favorecem os economicamente mais fortes.
Segundo o instituto Latinobarómetro, a democracia na América Latina não goza de boa saúde. Em 2010, 63% apoiavam esse conceito, mas em 2023, esse índice caiu para apenas 48%. Esta tendência parece firme e favorável ao populismo e ao autoritarismo de todos os tipos. As pessoas preocupam-se cada vez menos com uma democracia que não lhes garante direitos sociais ou políticos. O Brasil com Bolsonaro (2018-2023), o Peru com Boluarte (desde dezembro de 2022) e a Argentina com a possível chegada de Javier Milei, são sinais que confirmam o que foi dito.
As razões desta erosão da democracia estão quase sempre associadas à deterioração econômica e social dos cidadãos comuns, à concentração da riqueza, à expansão da pobreza e da desigualdade.
7. Protestos e insurgência popular, criminalização
Nas primeiras décadas deste século, os protestos e movimentos sociais com vestígios de insurgência registaram um aumento sem precedentes. Muitos governos ruíram, enquanto a consciência coletiva se fortalecia. Esta é a correlação da crise permanente do sistema capitalista. Mais de 90 países registaram diferentes modalidades de mobilização social, exigindo atenção e acesso a benefícios e serviços que foram negados em períodos “democráticos”.
Recentemente, o ativismo social e político tem se associado às forças de mudança, mas a reconfiguração social global é tal que as forças conservadoras e abertamente regressivas reivindicam proeminência. A “democracia” tem sido desafiada por esta estranha combinação de forças historicamente opostas.
Ultimamente, os protestos populares no Peru tiveram repercussões a nível regional e global, devido à repressão brutal que ceifou a vida de mais de 70 cidadãos que protestavam nas ruas. Dez meses após a sua ascensão ao poder, a presidente Dina Boluarte continua tentando fugir da sua responsabilidade diante desse tema.
Nos Estados Unidos, as greves voltaram a ser tendência, fazendo com que Biden e Trump tentassem posar como amigos dos sindicatos da indústria automobilística (General Motors, Ford e Stellantis), mobilizados há semanas. A crise do sistema capitalista, e em particular da globalização, afeta duramente as políticas de bem-estar, que não são suficientes. O setor público também exige melhores condições de trabalho, como é o caso do setor da saúde, especialmente no país norte-americano.
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Sistema democrático vem sendo questionado em muitos países do mundo
A desigualdade, a concentração de riqueza, a pobreza sem precedentes, as desigualdades de gênero e as alterações climáticas são alguns dos problemas mais recordados em protestos e marchas, “pacíficas” ou “violentas”, em todo o mundo. De acordo com a Universidade de Harvard, apenas 42% dos dois protestos considerados como “pacíficos” realizados em 2020 alcançaram algum nível de atenção. Em 2022, esse nível de sucesso baixou para 8%. Essa forma parcimoniosa de protesto popular tem contribuído muito para fortalecer os sistemas repressivos que, no final, acabarão por ser normalizados como ferramentas políticas, a partir da criminalização dos movimentos populares e dos seus líderes. O caso do Peru é ilustrativo nesse sentido.
O descontentamento na Europa aumentará quando a crise energética tiver um impacto ainda maior no custo de vida. Episódios semelhantes à “Primavera Árabe” foram anunciados no Oriente Médio. Da mesma forma, o Irã continuará a ser um barril de pólvora de questões sociais e políticas de natureza nacional e internacional. Internamente, o país enfrenta protestos pela morte de Mahsa Amini, enquanto estava sob custódia da polícia, em 2022.
8. Protecionismo e desglobalização
O caos observado atual no planeta é apresentado como o estágio anterior ao estabelecimento de uma “nova ordem mundial”. Pode até ser que isso venha a acontecer a médio ou longo prazo, mas a equação não é tão simples. As formulações, mais ou menos polidas, não são suficientes para descrever processos enormes como os que envolvem a elevação dos muros do protecionismo e a transformação da globalização numa caricatura dos níveis que atingiu.
Mas quem são aqueles que tornam possíveis estes processos globais? Quem tem o poder de percorrer e refazer caminhos que envolvem todo o planeta? Quem pode mudar subitamente o mercado através do intervencionismo?
A crise de 2008 foi a vitrine global que mostrou claramente os “germes” que, segundo Marx, acabariam com o sistema capitalista em algum momento. Este sistema não é uma abstração, é um conglomerado de empresas poderosas que se encarregam de gerir o destino da economia e da sociedade mundial através dos seus “encarregados”, genericamente chamados de “governos”.
Diante da crise da globalização, o que convinha era oxigenar o mercado livre, que não garantia a sobrevivência do sistema. Como se está fazendo isso? Implementando políticas protecionistas que até então eram vilipendiadas pelo neoliberalismo. Dezenas, senão centenas de acordos de comércio livre foram literalmente desperdiçados, enquanto a promoção do liberalismo econômico se silenciava.
Como dizem analistas e especialistas, o protecionismo e a desglobalização constituem o maior risco e desafio para a economia mundial. Aqueles que os promovem com entusiasmo digno de uma causa melhor são os poderosos países do G7 e seus parceiros. As grandes empresas defendidas por esses estão desmantelando as fábricas que haviam instalado em outros países – quando a tendência era buscar mão-de-obra barata para servir como antídoto à tendência descendente da taxa média de lucro.
Epílogo: tal como em outros campos da geopolítica e da economia, a China estava à frente do Ocidente neste processo. Os gestores do sistema capitalista só tomaram consciência da necessidade de reverter a globalização com a crise de 2008. Antes criticavam virulentamente os estrategistas chineses, agora pedem-lhes conselhos. O mundo está louco.