Quando Jair Bolsonaro disse que apoiou a designação de Dina Boluarte como presidente do Peru, os peruanos entenderam como um gesto lógico de uma direita que apoiou uma manobra parlamentar travestida de impeachment, cujo resultado foi justamente o retorno da direita ao poder no Peru. Qualquer pessoa despojada de “ideias comunistas” era melhor no governo do que Pedro Castillo, acusado de gratuitamente de “comunista”. Mas quando Lula, já eleito presidente, e, após tomar posse, disse o mesmo que Bolsonaro, a direita peruana explodiu de alegria. A esquerda ficou confusa e optou pelo que geralmente faz, quase que intuitivamente: criticar o petista por apoiar um governo que resultou de um golpe parlamentar.
Textualmente, Bolsonaro disse que seguia “com preocupação a situação política interna no Peru, mas esperando que a ordem institucional seja imposta”. Lula da Silva disse que vinha “acompanhando os fatos que levaram à destituição constitucional do presidente com grande preocupação”. Não era necessário dizer mais nada para deixar clara a posição de apoio à Boluarte. Além disso, os princípios do direito internacional estabelecem o respeito à decisão soberana de cada país, partido do princípio da autodeterminação.
As posições coincidentes de dois homens politicamente irreconciliáveis expressam uma política estatal subjacente que, bem executada, transcende avatares políticos da situação. O Itamaraty, como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, tem um bom prestígio no mundo da diplomacia e, para quem é bom entendedor desse ramo, não deve surpreender sua posição para com um país como o Peru, que não tem sido precisamente um grande aliado histórico e não representa um fator gravitacional na geopolítica brasileira.
Um pouco de história
Peru e Brasil estabeleceram suas relações diplomáticas entre 1826 e 1827. Ou seja, quase 200 anos de uma reciprocidade dificilmente equitativa, derivada das assimetrias evidentes entre os dois países, bem como seus próprios interesses e alinhamentos nacionais na tentativa de hegemonia mundial. Seus 2,8 mil quilômetros de fronteira em comum, com territórios peruanos praticamente abandonados pelo Estado, podem atestar o dito anteriormente.
O comércio entre Peru e Brasil atingiu a cifra de 4,3 bilhões de dólares em 2021, equivalente a 25% do que foi comercializado entre Peru e Estados Unidos no mesmo ano. Segundo números oficiais, a tendência crescente é sustentada ao longo do tempo e, obviamente, isso favorece aqueles que fazem negócios e veem no Brasil o principal parceiro comercial peruano na América Latina.
No entanto, os números não correspondem necessariamente aos interesses do Peru. Como geralmente é o caso em todos os acordos comerciais assinados por Peru, os beneficiários são as grandes empresas com poder de fazer negócios internacionais, que obtêm vantagens comparativas, enquanto os interesses nacionais têm menor prioridade.
É por isso que, de acordo com alguns especialistas, as relações do Peru com o Brasil “nunca foram estreitas”. O interesse comercial sempre prevaleceu, enquanto os interesses nacionais referentes ao desenvolvimento, à integração, entre outros, foram congelados por décadas na forma de uma “indiferença cordial”, em que as razões ideológicas e os alinhamentos geopolíticos determinaram as relações entre os dois países.
Nem mesmo os problemas gerados na Amazônia reverteram essa situação. A “diplomacia do silêncio” foi preferida até mesmo quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência do Brasil em 1995. Não é que ele tenha dado uma guinada repentina ao relacionamento entre os dois países, ainda mais tendo Alberto Fujimori (1990-2000) como seu homólogo peruano, mas teve que cumprir seu papel como garantidor as normas estabelecidas pelo Protocolo Rio de Janeiro (1942), que colocou ponto final aos conflitos na fronteira entre Peru e Equador.
Esse “ponto final”, para desgraça de ambos os países, não havia sido alcançado, porque o Equador não queria desistir de seus “direitos” sobre a Amazônia e não tinha uma ideia melhor do que desencadear a chamada Guerra de Cenepa (1995).
Independente de se o resultado desse conflito patrocinado pelo Brasil favoreceu ou não o Peru, o fato é que os países aproveitaram a circunstância para produzir a Ata de Brasília, que deu origem à Comissão Fronteiriça Peru-Brasil e ao Plano de Ação de Lima (1999), orientados a promover a integração física e a defesa do ecossistema da Amazônia.
Com Alejandro Toledo (2001-2006) como presidente no Peru, após a queda de Fujimori, as relações passaram a ter uma dinâmica mais ousada. O Peru apoio de forma entusiasmada a criação da União das Nações da América do Sul (Unasul) e das Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Durante os mandatos de Alan García (2006-2011) e Ollanta Humala (2011-2016), as relações com o Brasil, entre discursos grandiloquentes de ambas as partes, não apresentaram melhora, exceto no campo comercial, retornando à antiga diplomacia da “indiferença cordial”.
Bruno Batista/VPR
Hamilton Mourão e Dina Boluarte após reunião, no ano de 2022
Diplomacia e gestos políticos
O mundo da diplomacia requer uma boa dose de entendimento do que são as relações internacionais, muitas vezes confundidas com as relações políticas internacionais. Compreender a lógica do enredo complexo das relações internacionais é condição sine qua non para não cair em processos básicos de julgamento do que um governo faz ou deixa de fazer. Acreditar que um partido político pode fazer política externa é o erro mais recorrente nesse sentido.
Por isso, abundam as “exigências” e “chamados” de partidos e grupos políticos para que os governos – sujeitos a uma política de Estado, como é a política externa – “digam algo” sobre o que está acontecendo no Peru. Erro crasso! Os Estados que têm uma política externa que transcende os governos jamais dirão o que os requerentes desejam e sim o que está de acordo com os interesses nacionais e seu jogo geopolítico. Ainda mais se tratando de um país como o Brasil cujo protagonismo na geopolítica mundial é inegável.
Portanto, se o Brasil de Lula disser algo sobre o Peru, o fará dentro da estrutura de sua política externa, a mesma que, claramente, visa recuperar o destaque global que perdeu durante o mandato de Bolsonaro. Para isso, será muito mais conveniente manter uma relação de “indiferença cordial” em vez de mensagens potencialmente contraproducentes para sua política externa e seus objetivos geopolíticos. Algo tão simples como ser fiel ao princípio da autodeterminação dos povos, pelo qual estará sempre aberta a possibilidade de ter um aliado em vez de um inimigo, mesmo que pequeno.
O ‘suicídio político’ de Castillo
Todos os países da região, exceto os Estados Unidos, ficaram surpresos com a decisão de Castillo. A pretensão absurda e desajeitada de “dissolver” o Congresso lhe rendeu o repúdio de gregos e troianos, e terminou o levando à prisão. Mesmo assim, os governos do México, Colômbia e Argentina exigiram respeitar a “ordem institucional”, aquela que estava sendo dinamitada pelo próprio Castillo. O Brasil, com Bolsonaro ainda alinhado automaticamente a Washington, expressou seu apoio à “sucessão constitucional” que transformou Boluarte na presidente do Peru. A maioria dos serviços diplomáticos preferiu manter o silêncio “prudente”. A Organização dos Estados Americanos (OEA), depois que algumas manifestações a favor de Castillo, parou de se publicar comunicados sobre o Peru em qualquer idioma. Era tempo de alinhamento.
Todos expressaram seu lamento e “profunda preocupação com a crise política vivida pela querida vizinha República do Peru”, exigindo que “todos os atores políticos e sociais a atuem para proteger instituições democráticas, o estado de direito e a ordem constitucional”. Assim é a linguagem diplomática, não se pode esperar muito mais. A comunidade internacional deve fazer vistas grossas caso a “paz” que Boluarte tenta impor no Peru a ferro e fogo seja consolidada.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.