Somente no Peru:
– Os crimes contra a humanidade podem ficar impunes. Mais de 70 pessoas mortas nos recentes protestos populares e não há qualquer responsabilização política ou material, mesmo que 50 casos tenham registrado indícios de execução extrajudicial cometida pelas forças de segurança do Estado.
– Quem não ganha as eleições pode governar. A coalizão de ultradireita que governa nos dias de hoje já não fala da suposta fraude graças a qual teria perdido as eleições em 2021. Hoje, quando tudo está em suas mãos, a narrativa é de que o Peru “recuperou a democracia”.
– Pode haver um Congresso composto por estupradores, vigaristas, pessoas que têm contas a ajustar com a lei e que são membros de organizações criminosas. Transformaram o Congresso num balcão de negócios, onde o voto do parlamentar é vendido a quem paga mais.
– É possível eliminar o equilíbrio de poderes, golpe após golpe, e concentrar o poder no Legislativo sem qualquer contrapeso, onde se encontram as mais repugnantes alianças políticas de ultradireitistas e autoproclamados ultraesquerdistas.
– Pode haver seis presidentes em sete anos. Dina Boluarte, Pedro Castillo, Francisco Sagasti, Manuel Merino, Martín Vizcarra e Pedro Pablo Kuczynski.
– O Ministério Público e a Polícia Nacional podem ser politizados ao ponto de se tornarem operadores de uma vasta operação de lawfare, dispersada por todo o território nacional. O seu principal objetivo é criminalizar e perseguir todos os que se opõem ao regime.
– A “legitimidade” pode ser desconsiderada e a “legalidade” pode ser transformada em instrumento perverso a serviço do abuso, da corrupção e dos crimes executados pelo Executivo e pelo Congresso.
O discurso da presidente
Neste cenário, os peruanos esperavam, no dia 28 de julho, um discurso presidencial “inclusivo”, como diriam os nossos sociólogos da moda. Esperavam da presidente Dina Boluarte, em sua declaração em cadeia nacional, um sincero pedido de perdão pelos crimes contra a humanidade encorajados pelo seu governo, bem como um compromisso concreto a respeito da reparação aos danos causados e da punição aos responsáveis.
De que outra forma se poderia entender a crueldade de pedir perdão e reconciliação, enquanto, ao mesmo tempo, as forças de segurança reprimem o povo mobilizado na Praça San Martin, nas ruas de Lima e em diversas regiões?
Presidência do Peru
Presidente peruana Dina Boluarte realizou declaração em rede nacional no dia 28 de julho
Era a prova de que a “legalidade” justificava todos os atos do governo, enquanto a legitimidade desaparecia neles. Max Weber, em 1921, chegou à conclusão de que governar apenas com uma “legalidade” questionável acaba por gerar um desgoverno. Este divórcio entre legalidade e legitimidade explica claramente a crise generalizada que o Peru atravessa atualmente.
Não interessa à presidente peruana o fato de que 82% dos cidadãos desaprovam a sua administração, enquanto 92% desaprovam o trabalho do Congresso. Mais de 80% da cidadania exige eleições antecipadas. Mais 70% dos peruanos pedem uma nova Constituição. Mas Boluarte prefere se ater à legitimidade e aceitar incondicionalmente a tutela das Forças Armadas e os “conselhos” intervencionistas dos Estados Unidos.
Em sua declaração, a presidente sequer se preocupou em ser fiel à verdade dos indicadores econômicos. Negou vergonhosamente a recessão que o país vive, dizendo que o PIB de maio passado teria registrado “0% de crescimento”, apesar dos organismos oficiais registrarem uma queda nesse mês, que atingiu um valor sem precedentes de 1,4%, e que a previsão para junho é de repetir essa tendência. A recessão brutal negada pela presidente atinge sobretudo os setores geradores de emprego, como a pesca (70%), a indústria de manufaturas (28%) e a construção civil (12%), segundo o Banco Central peruano.
A ironia do discurso foi o momento em que, com aquele cinismo magistral, Boluarte atribuiu todos os males do Peru ao “conflito social”. Ela esquece deliberadamente que as verdadeiras razões estão na política monetária recessiva e nas políticas públicas promovidas sob sua gestão, a partir do Ministério da Economia. Para Boluarte, não há impactos da guerra na Ucrânia e do El Niño.
Para fugir do tema recessão, a presidente ensaiou uma catarata de promessas e desfilou estatísticas que a distanciam da realidade. Disse, por exemplo, que o governo vai investir mais de US$ 6,5 bilhões em obras públicas até o final do ano, ignorando o fato de que, no primeiro semestre foi gasto apenas US$ 1 bilhão, segundo dados do Ministério da Economia.
Como a presidente vai cumprir essa promessa? Poderia ela dizer aos peruanos quais serão as fontes de financiamento de que dispõe, quando os impostos caíram para níveis sem precedentes (13% do PIB)?
Executivo e Legislativo
Enquanto a presidente fazia o seu discurso, o Executivo e Congresso davam rédea solta aos seus apetites pessoais e aos dos grupos de poder. A ética e a moralidade na dinâmica parlamentar já perderam qualquer validez. Com exceção de alguns poucos parlamentares, a grande maioria negocia seu voto com um caderninho de condição debaixo do braço, seu preço para aceitar o sistema de partilha do poder.
Por isso, não é de se estranhar as alianças dos ultradireitistas (fujimoristas e aliados) com os que ainda se dizem de esquerda (Peru Livre e quejandos). Em tais acordos não há necessidade de princípios ou programas para o país. Basta uma declaração pública hipócrita dizendo que se estão unindo “em nome do interesse nacional”, quando na verdade o que fazem é proteger interesses e privilégios derivados da sua condição circunstancial de congressistas.
Em vez de um jogo democrático para encontrar correlações que garantam estabilidade e governabilidade, respeitando o povo que os elegeu, optam pelo “dar e receber” (uma versão local que ultrapassa a expressão inglesa), pela “vendeta”, espécie de acerto de contas “político” que amesquinha o apogeu de Al Capone, como se viu no cínico acordo de interesses que estabeleceu a permanência da presidente e dos atuais congressistas até 2026.
Não se importam com a opinião de 90% dos cidadãos peruanos que desaprovam o seu desempenho, nem com os 80% que exigem eleições antecipadas.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Victor Farinelli.