O protesto e rebelião das regiões do interior peruano têm motivações concretas. O economista Efraín Gonzales de Olarte diz, a partir de uma exaustiva investigação, que o “sistema de periferia central” é o mecanismo pelo qual essas regiões e seus povos têm sido excluídos de qualquer possibilidade de desenvolvimento, enquanto Lima e outras capitais regionais se beneficiaram. Os números são esmagadores: o produto per capita em Lima é quatro vezes o das regiões juntas; cinco vezes mais que o das localidades onde se registra o maior número de protestos [Puno, Ayacucho, Apurímac e Huancavélica].
O crescimento de Lima e suas réplicas regionais tem sido centralista e excludente, levando a renda de um trabalhador urbano seja três vezes maior que de um trabalhador rural. O Índice de desenvolvimento humano de Lima é de 0,7, enquanto das outras regiões quase não atinge 0,4.
Tudo isso implica que a lacuna socioeconômica entre as regiões e Lima é aprofundada, comparável à que existe entre os países europeus e o país mais pobre da África.
Essa são as razões que estão na base da rebelião regional, junto com a indignação pelo assassinato de mais de 60 manifestantes desde dezembro passado. Um movimento que continuará em março com a mesma ou até com força maior do que a vista nos 80 dias anteriores.
Desde 1 de março, as marchas começaram a chegar à capital do Peru, vindo de diversas regiões, para a “segunda tomada de Lima”.
O governo sabe perfeitamente que a rebelião é um ato profundamente político e que questiona o poder que está governando o país atualmente.
Não é apenas uma reivindicação. Tampouco basta fazer obras aleatórias para acalmar os ânimos dos insatisfeitos, que é a estratégia da administração de Dina Boluarte [marionete nas mãos de setores conservadores civis e militares], seguindo uma lógica fascista.
Não é “só mais uma marcha”, como dizem os militares que sitiam o Estado. O ato que os movimentos regionais estão anunciando tem base política e capacidade de questionar o sistema “centro-periferia” que despreza o interior, privilegia Lima e gera extremos insustentáveis.
Destruindo a paz interna e a democracia
Mais de 60 mortes sem serem investigadas pela procuradoria nação. Um sinal de que o regime autoritário de Boluarte tem o apoio não apenas das Forças Armadas, mas também do Judiciário, Ministério Público, Tribunal Constitucional e do Congresso da República. E, claro, também com a tutela descarada dos Estados Unidos.
O informe da Coordenaria Nacional de Direitos Humanos do Peru (CNDDHH), que denuncia “massacres, execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, tortura, tratamento degradante e violência sexual contra detidos” até o momento não serviu para comover os tribunais. De acordo com o relatório, “não há nenhum item do catálogo de direitos humanos que não tenha sido violado”. Essas conclusões, segundo o porta-voz do governo, seriam influenciadas por “comunistas”, quando não “terroristas”. Atroz!
Isso se reflete no fato de que 77% da cidadania desaprova a gestão de Boluarte como presidente, enquanto o Congresso, seu principal apoio político, tem 90% de imagem negativa. Ainda assim, fechando os olhos e cobrindo os ouvidos, Executivo e Legislativo repetem incessantemente que o governo é “sólido” e que “há paz” no Peru, “sob o princípio da autoridade”. Ou seja, sob repressão e território militarizado.
Reprodução/ @presidenciaperu
‘Boluarte insiste em despedaçar também a imagem do país perante o mundo’
Isolamento internacional
Depois de destruir a democracia no Peru, Boluarte insiste em destruir a imagem do Peru como um país amigável e como destino turístico. Também esfacela a reputação da nossa diplomacia ao longo de sua história, a partir de performances vergonhosas dos três últimos chanceleres, Ana Gervasi, César Landa e Oscar Maurtua. O caminho para se tornar um fracasso internacional parece estar garantido.
O jornal mais poderoso do Peru, colocado a serviço do governo Boluarte, confronta o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, dizendo que, com sua atitude em relação ao governo atual [de apoiar o ex-presidente Pedro Castillo], ele “manchou a trajetória da política externa mexicana” e justificou a “retirada definitiva” do embaixador peruano do México, fazendo com que as relações com esse país se mantenham apenas no nível comercial. Seguir essa escalada de rompimento de relações diplomáticas seria um passo a mais, e o mais estúpido, no processo já avançado de isolamento internacional do Peru.
O Ministério das Relações Exteriores do México, mostrando que sabe jogar esse jogo, respondeu dizendo que, “apesar da infeliz decisão do governo peruano, manterá sua representação diplomática e consular em Lima”. Lição para os homólogos peruanos sobre como funcionam os protocolos de política externa.
Mas não é apenas Obrador que critica expressamente o governo de Boluarte, cujos elementos fascistas são cada vez mais evidentes. Também o fizeram publicamente os presidentes da Colômbia, Gustavo Petro, Bolívia, Luis Arce, Argentina, Alberto Fernández, Honduras, Xiomara Castro, e Chile, Gabriel Boric. Todos eles, com sua própria ênfase, mas sem eufemismos.
“Condenamos o golpe de Estado e a agressão a qual o povo peruano está submetido”, disse a hondurenha Castro.
“Não podemos ser indiferentes quando, no Peru, as pessoas que querem se manifestar são assassinadas por aqueles que devem defendê-las”, declarou Boric.
“Não reconhecemos o atual governo [do Peru] e apoiamos nossos irmãos que estão lutando contra a ditadura de Boluarte”, expressou Arce.
“Repudiamos a prisão de Castillo, que carece de uma sentença judicial definitiva”, comentou o colombiano Petro.
“Não devemos deixar o povo do Peru sozinho. Foi uma infâmia o que fizeram com Pedro Castillo e a maneira como eles estão reprimindo as pessoas”, opinou o mexicano Obrador.
A Organização das Nações Unidas (ONU), diante da pressão internacional, exigiu que as autoridades do Peru “realizassem investigações rápidas, eficazes e imparciais” sobre as mortes registradas nos protestos, e que “evitem a estigmatização das vítimas”. Em 60 dias, o governo deve entregar um relatório a respeito.
Enquanto isso, a Organização dos Estados Americanos (OEA), de forma relutante, limitou-se a convidar Boluarte a uma reunião protocolar na qual nada foi dito ou acordado. Contudo, após a decisão da ONU, a entidade pan-americana deve se adequar em breve.
Ambos os organismos multilaterais sabem perfeitamente que Boluarte está sendo apoiada pelos Estados Unidos, um fato que os obriga a agir com “cautela e ponderação”. Ou seja, com medo do patrão.