Diante das acusações de alguns meios de comunicação e personagens ligados ao governo de Dina Boluarte em relação que as mobilizações populares estariam sendo bancadas por atividades ilegais [leia-se narcotráfico e crime organizado], as ruas respondem: “o povo financia o povo”.
Devido aos esforços pela antecipação das eleições estarem se transformando em um caminho para os objetivos da direita, as ruas respondem: “Assembleia Constituinte ou nada!”.
Diante da ameaça fascista de mais repressão criminosa por parte dos agentes de Estado, as ruas respondem: “não temos mais medo”.
A crise no Peru é um problema de alta complexidade política e social, e que, lamentavelmente, continua cobrando vidas.
Balanço econômico
Nas últimas semanas, o Peru registrou perdas econômicas dos grandes negócios, aqueles sacralizados por grupos de interesse, mas não somente isso. Muito piores foram as perdas de 63 vidas ceifadas por balas assassinas durante a repressão ordenada pelo Poder Executivo, nos 50 dias de governo da presidente Boluarte. Infelizmente, esses homicídios não importam nada para aqueles que optaram por se colocar a serviço do grande capital.
Os defensores do modelo, fingindo preocupação, também dizem que milhões de microempresários deixam de ter lucro pelo bloqueio de estradas, ruas e avenidas. Isso é uma meia verdade. Efetivamente, os produtores do setor microempresarial do campo e da cidade deixam de vender seus produtos aos que decidem que preço pagarão por eles, com o poder outorgado pela estrutura monopsônica da demanda.
Isso, é, precisamente, o que os milhões de microempresários que apoiam a mobilização popular querem mudar. Basta de abuso monopsônico. Basta de lucros milionários para as grandes empresas e “rendas de sobrevivência” para os microempresários. Basta ver como se abastecem os grandes supermercados e lojas de departamentos.
Os 5,5 milhões de microempresários peruanos sabem que uma nova Constituição mudará suas condições de participação em um mercado que, atualmente, é controlado pelos monopólios e monopsônios. Sabem que há uma oportunidade de fazer negócios justos no Peru. Suas “perdas” de agora são apostas por um futuro melhor.
É verdade que a grande mineração, a agro exportação, a gigantesca indústria da pesca, os monopólios do serviço de transporte aéreo, da comercialização do petróleo e derivados, entre outros ramos que estão nas mãos das multinacionais blindadas pela atual Constituição, perdem dinheiro porque deixam de produzir e vender. Isso é óbvio.
Os capachos do empresariado nacional dizem estar “preocupados pelo Peru”, que já se acumularam mais de 2 milhões de dólares em perdas em atividades primárias extrativistas. Nossa, que tamanha desgraça! Vociferam o apocalipse econômico desencadeado pela mobilização popular, quando na verdade é a Constituição de 1993, após 30 anos de ignominiosa vigência, a que foi colocada em dúvida pelos protestos que se tornaram uma autêntica rebelião popular.
Mas os puxa-sacos insistem. Proclamam aos quatro ventos a queda das vendas ao exterior, que o Estado deixa de receber milhões e milhões de dólares em impostos. Pobre Peru! Esses “rebeldes” e “comunistas” têm toda a culpa! Em todos os relatos da direita, o povo não existe.
Imaginemos por um momento que o último argumento fosse verdade, ou seja, que o Estado deixasse de receber milhões em contribuições. Agora, apliquemos esta “certeza” aos 30 anos de “crescimento milagroso” da economia peruana e que, supostamente, muitos milhões de dólares teriam sido tributados ao Estado.
Os questionamentos sobre esse discurso são gritantes: onde foram parar esses milhões em receita durante 30 anos de milagre econômico? Por que, como revelou a pandemia, os sistemas de saúde, educação e comunicação são os piores da América Latina? Por que ainda temos mais de 20% de nossa população em extrema pobreza? Por que a desigualdade aumentou? Por que os trabalhos informais, tão criticados pelos defensores do neoliberalismo, continuam sendo a maior fonte de emprego?
E as perguntas poderiam continuar. O que mais os milhares de pobres do campo e da cidade, inclusive microempresários, poderiam perder com essa mobilização popular com sinais de rebelião?
Twitter/ CGTP PERU
‘Crise no Peru é um problema de alta complexidade política e social, e que, lamentavelmente, continua cobrando vidas’
Esta última pergunta traz à mente o Manifesto Comunista [de Friedrich Engels e Karl Marx], após o sucesso da revolução liberal contra a monarquia na França [1848] e o crescente fervor revolucionário na Alemanha, Itália, Áustria, Hungria, entre outros, que tem a seguinte redação:
“Que as classes dominantes tremam, se quiserem, com a perspectiva de uma revolução comunista. Os proletários, com ela, nada têm a perder, exceto seus grilhões. Em vez disso, eles têm um mundo inteiro a ganhar. Proletários de todos o mundo, uni-vos!”.
Hoje, com a dose de ousadia do caso, podemos parafrasear aquele texto histórico endereçando-o à direita política e empresarial peruana, que retomou com força o poder que as urnas lhes negaram em 2021, com a seguinte adaptação:
“Que as classes dominantes e os grupos de poder tremam diante da perspectiva de uma rebelião popular. Os pobres do campo e da cidade, e com eles os microempresários, nada têm a perder, a não ser sua nefasta dependência e submissão aos monopólios e monopsônios. Eles têm, ao contrário, uma oportunidade de vencer com uma mudança na Constituição que os oprime. Pobres do campo e das cidades do Peru, uni-vos!”.
A crise política e social, assim como seu aprofundamento, não se explica pelo fracasso do autogolpe de Pedro Castillo, nem pelo malfadado contragolpe do Congresso. Esses acontecimentos foram apenas fatores desencadeadores de processos que se iniciaram junto com a Constituição de 1993, desenhada para atender aos interesses do poder econômico-financeiro que concentrou brutalmente a riqueza [1% da população concentra mais de 45% da riqueza nacional] e, ao mesmo tempo, aprofundou a desigualdade até extremos que não são mais sustentáveis.
As ruas deixam claro que…
- O poder popular existe e se expressa, agora, nas ruas e praças, desarticulando aqueles que, do Executivo e do Legislativo, tentaram se apropriar dele. Diante da sistemática recusa e escárnio daqueles que se encarregavam da gestão das instituições públicas, o povo resolveu lembrar que o único detentor do poder é ele, o soberano. Não há mais. Aqueles que, embriagados com o poder fugaz que o povo lhes tinha concedido, diziam que ficariam até 2026, hoje fazem as malas para regressar quase imediatamente para casa. Assim como ele os colocou, o povo pode depô-los. Por isso, 81 pontos da malha rodoviária nacional continuam bloqueados e a ameaça de desabastecimento em Lima torna-se iminente.
- A direita fascista e seus aliados, acreditando que poderiam governar sem ter vencido as eleições, agora percebem que isso não é possível. Eles acreditam, como se esperassem um milagre, que a paz voltaria quando a “multidão” se cansasse de suas marchas. Vã Ilusão, pois nem mesmo o “Estado de Direito” [leia-se repressão com massacres] será capaz de deter o tsunami popular. Suas tentativas de desacreditar a rebelião popular [chamando-a de “vandalismo”, “terrorismo”, “ação financiada pelo crime”, etc] não surtem efeito. A maioria dos que estão nas ruas, praças, estradas e aeroportos são pessoas esquecidas pelo sistema, mas dignas de contribuir com seu grão de areia em prol da luta popular. Essa direita, seu governo e seus “líderes” não entendem o que é solidariedade.
- O elemento que faltava na mobilização: na terça-feira (31/01) houve uma grande manifestação de universitários em todo o Peru e, aparentemente, foi apenas uma demonstração de sua decisão de lutar ao lado do povo. O recado dado: enquanto Boluarte não cair, a data das eleições antecipadas não for especificada e a população não for consultada sobre sua vontade de querer ou não uma nova constituinte, a “luta vai continuar”. Os estudantes fizeram com que cinco províncias departamentais [das 24 que o Peru possui], que não estavam participando dos protestos, tomassem a decisão de entrar no jogo, com as mesmas demandas que mobilizam todo o Peru: “Dina Boluarte renuncia”, “antecipação das eleições” e “Assembleia Constituinte”.
- O “fator Evo Morales”: vendo que todas as suas estratégias de difamação contra a mobilização popular não surtem os resultados esperados, a direita levantou a absurda acusação de que Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, não só estava por trás das grandes mobilizações no Sul do Peru, mas também que estava por trás uma campanha separatista da região de Puno. Tais acusações, provenientes do delírio de alguns personagens, não tiveram repercussão, apesar da grande cobertura jornalística que receberam. Este fato tornou-se extremamente ridículo quando as delegações diplomáticas do Peru foram absurdamente instruídas a revelar a intromissão não só de Morales, mas também do mexicano Andrés Manuel López Obrador e outros presidentes latino-americanos.
Nada do que a direita está fazendo para desacreditar a mobilização popular é suficiente para detê-la. O que estamos vendo nas ruas é um movimento social e político contínuo em todos os rincões do Peru, amadurecendo e agregando contingentes humanos convertidos em rios, cada dia maiores, em direção à cidade de Lima.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.