Eleições com cheiro de bandidagem
A movimentada saída de Rafael Correa do Equador e sua estadia na Bélgica como refugiado político ainda é fato recente. Traindo seu mentor, o ex-presidente Lenín Moreno (2017-2021) lançou uma perseguição política do tipo lawfare, com a intenção de liquidar o correísmo e o próprio Correa.
A direita equatoriana, apelando às suas conhecidas táticas, tentou vincular o correísmo ao assassinato de Fernando Villavicencio para reverter a tendência das pesquisas, que indicavam uma vitória de Luisa González. Porém, como se observa nas notícias que nem sempre chegam a todos os eleitores, o crime tem mais a ver com os métodos com os quais Villavicencio prometeu que combateria o tráfico de drogas.
Em meio a esse cenário, todos os candidatos centraram o seu discurso na reta final da campanha na questão da segurança, prometendo “mão forte” contra o crime organizado, o tráfico de drogas e a criminalidade comum. Esse deverá ser o eixo da campanha eleitoral até 15 de outubro, data no segundo turno.
Resultado do primeiro turno
A direita e os seus apologistas acreditavam que ao culpar o correísmo pelo assassinato de Villavicencio poderiam inverter as tendências das preferências eleitorais. Estavam completamente enganados. Luisa González ficou em primeiro lugar com quase 34% dos votos, ratificando o triunfo do correísmo nas eleições regionais e municipais de fevereiro de 2023. O impacto do crime ocorrido nas preferências eleitorais permanece para análise, já que não é segredo que o partido correísta Revolução Cidadã queria a vitória já no primeiro turno.
Por outro lado, surpreendendo próprios e alheios, o outsider Daniel Noboa, representante dos poderosos empresários bananeiros equatorianos, alcançou o segundo lugar com 23%, deixando para trás a extrema direita e a extrema esquerda. Yaku Pérez, o candidato indígena e autoproclamado representante da esquerda no Equador, não alcançou sequer 4% dos votos.
Consequentemente, no dia 15 de outubro, Luisa González e Daniel Noboa disputarão a presidência do Equador no segundo turno. Cada um deles representa um modelo de desenvolvimento, se não diametralmente oposto, pelo menos diferente. A primeira imprimirá à sua campanha um discurso social, sem esquecer a segurança, enquanto o segundo insistirá no liberalismo que herdou de Álvaro Noboa, seu pai, cinco vezes candidato à presidência.
Apesar de dizer que sua candidatura representa um “projeto novo”, essa novidade está presente apenas em sua juventude. Os vínculos de classe de Noboa o levam inexoravelmente a fazer parte de um modelo desenhado sob os padrões do sistema capitalista.
Nesta perspectiva, é altamente provável que se repita a dinâmica da polarização entre o correísmo e o anticorreísmo. Noboa liderará a coalizão anticorreísta, composta pela coalizão que ele lidera e que contará com o apoio de outras figuras da direita, como Christian Zurita (que ficou em terceiro lugar, com 16%) e Jan Topic (um declarado seguidor do presidente salvadorenho Nayib Bukele, que ficou em quarto lugar com não desprezíveis 14%, e que já anunciou publicamente o seu apoio a Noboa).
Uma operação aritmética simples, mas absolutamente irrealista, poderia nos dizer que Noboa está em vantagem com quase 54%. Mas a realidade não costuma ser matemática e, em política, nada se diz. Mesmo assim, os números indicam que existe uma direita que lutará arduamente para assumir o governo equatoriano, sobretudo motivada pelo seu ódio visceral a Correa.
Revolução Cidadã
Luisa González venceu o primeiro turno no Equador, mas terá de enfrentar um duro cenária na segunda etapa da campanha presidencial
Quanto a Luisa González, a candidata do correísmo difícilmente conseguirá novos aliados para o segundo turno. Esperar que Yaku Pérez a apoie no segundo turno seria algo compreensível, mas que não aconteceu após durante a primeira semana após o primeiro turno. Ela terá que ser paciente. O apoio de Pérez é mais importante pelo significado simbólico do que numérico. A opção de endossar este voto supõe um ato de racionalidade política que parece estar ausente na conduta deste líder que, em algum momento, também propagou o discurso anticorreísta. O cenário não está nada fácil para Luisa González.
Yasuni, triunfo à parte
Valor de uso ou valor de troca? O dilema planteado pela Teoria do Valor (Marx) à nossa realidade centrada foi reproduzido, desta vez, na questão do Parque Nacional Yasuni, que abrange mais de um milhão de hectares.
No plebiscito sobre o permitir ou não a exploração de petróleo nessa zona, venceu a opção da defesa dos direitos da natureza. Também foi, sem dúvida, uma vitória das populações indígenas que vivem neste território megadiverso que faz parte do espaço amazônico, algumas delas em isolamento voluntário. Em 18 meses, contados a partir da data da votação, nem mais uma gota de petróleo poderá sair da região, por decisão do poder popular.
Por outro lado, Karl Kautsky ficaria feliz em ver como a renda fundiária na América Latina, em meados da terceira década do século XXI, tem expressões concretas e muito próprias. Marx já dizia que a evolução da sociedade não é linear (escravidão, feudalismo, capitalismo, comunismo), uma vez que os sistemas de organização do poder, de controle dos meios de produção, bem como as relações de produção derivadas, que respondem a realidades concretas, tais como como as sociedades que ocuparam o espaço andino, incluindo a civilização Inca.
O Equador tornou-se pioneiro na luta pela defesa da natureza. O referendo, mecanismo legítimo de expressão do poder do povo, estabeleceu que, acima de qualquer consideração mercantil, está o “valor de uso” da natureza, o seu carácter de “casa” de milhares de cidadãos que nela vivem e usufruem dos seus frutos. Quem quis transformar em mercadoria quebrou a cara. A sentença do povo equatoriano foi clara: nem tudo é mercadoria, nem tudo é dinheiro. Tardarão anos para que existam novas condições para permitir que o conceito de “valor de troca”, típico do sistema capitalista, volte a ser relevante no caso de Yasuni, para atender aos interesses do grande capital. Por enquanto, o extrativismo predatório não existe mais na região.
O povo equatoriano, depois de uma longa luta iniciada em 2006, acaba de demonstrar ao mundo inteiro que nem tudo é capitalismo selvagem, nem esse que se diz hipocritamente “civilizado”. Na nossa América Latina existem realidades, talvez pouco visíveis por enquanto, onde há uma visão de mundo que estabelece o respeito pela natureza como prioridade.
Para os capitalistas dedicados às mercadorias e ao “valor de troca”, essa decisão é quase uma loucura, dado que os equatorianos perderão milhares de milhões de dólares por ano como parte da “renda da terra”. Estes defensores da renda diferencial e absoluta da terra nunca compreenderão que o respeito pela natureza está acima da economia e do cálculo frio do lucro. Cerca de 59% das equatorianas e equatorianos preferiram o direito de ter um bom relacionamento com a Pachamama. A lógica do mercado foi derrotada.
Foi um voto de “SIM” à vida. Um “SIM” para o petróleo ficar onde está, no subsolo. Um “SIM” para os presidentes da Amazônia, após a cúpula em Belém do Pará, levarem muito em consideração.