Desde o dia 7 de dezembro de 2022, quando Dina Boluarte foi imposta pela ultradireita como presidente do Peru, a possibilidade de destitui-la não deixou de fazer parte do discurso político do Congresso, cuja reprovação cidadã já chega a 92%. Os argumentos para essa hipótese beiravam o patético: que a “sucessora” era tão “comunista” quanto Pedro Castillo [deposto pela direita] e [por mais paradoxal que pareça] que quem promovia a derrubada da mandatária eram os mesmos parlamentares que a impuseram na Presidência.
Até quatro semanas atrás, essa ameaça era apenas parte do show de pirotecnia que o Congresso usava para distrair a população. Na realidade, paulatina e consistentemente, a direita e a extrema direita deixaram de se interessar por um processo de impeachment, não só porque era um “mau negócio”, mas porque Boluarte havia se alinhado completamente aos objetivos da extrema direita dominante no Congresso. Um setor da esquerda se encarregou de insistir no discurso do juízo político, ciente de que não alcançaria os votos nem mesmo para sua admissão ao plenário, justamente porque “proclamar” o “impeachment” não prejudicaria seu verdadeiro objetivo: se manter no parlamento até 2026, exatamente como a direita quer.
Passaram-se as semanas, e na véspera do dia em que tratariam do “impeachment”, direitistas e esquerdistas perceberam que manter Dina Boluarte era funcional para seus objetivos, então era melhor manter o silêncio. Apesar das quase 70 mortes durante os protestos populares, 49 delas vítimas de execuções extrajudiciais, e da crescente pressão cidadã, era politicamente insustentável continuar fugindo do “show”.
Na primeira semana de abril, a “moção de vacância” [o instrumento legislativo peruano que é similar ao impeachment, já que permite ao parlamento declarar que o cargo de Presidente da República “ficou vago”] foi analisada pelo plenário do Congresso. A iniciativa se baseava nas responsabilidades da presidente com relação às mortes durante os protestos. Embora a pauta tenha servido para refrescar a memória dos parlamentares sobre os crimes contra a humanidade cometidos recentemente no Peru, o texto não foi aprovado e terminou sendo arquivado. Os 37 votos a favor só mostraram a fragilidade da esquerda, enquanto os 64 votos contra, com a furtiva abstenção de 10 parlamentares, mostraram a força da direita.
Partidos como Ação Popular, Somos Peru, Aliança Para o Progresso (direita liberal), Força Popular, Avança País, Renovação Popular (ultradireita), mais os “independentes” Carlos Anderson e Eduardo Málaga (direitistas de fato), votaram contra a moção. As 10 abstenções correspondem ao Partido do Magistério, que vem construindo, com atitudes como essa, uma imagem de legenda lúmpen. Foi inútil, por parte dos acusadores, apresentar o argumento de que a presidente está sob investigação do Ministério Público “pelos crimes de genocídio, homicídio qualificado e lesões graves, cometidos durante as manifestações nas regiões de Apurímac, La Libertad, Puno, Junín, Arequipa e Ayacucho, em detrimento da população peruana”. Não comoveu essa bancada.
A votação não foi realmente surpreendente. Direitistas e esquerdistas sabiam de antemão o que aconteceria com os votos. Todos estavam focados em seu compromisso de ficar no Congresso até 2026, mas mantendo suas imagens intactas após o “show do impeachment”. E foi assim que tudo aconteceu. Como sinal de gratidão, a presidente concedeu o parlamento um crédito suplementar de 48 milhões de sois peruanos [cerca de R$ 62,7 milhões] para incrementar os luxos e privilégios dos congressistas, enquanto os afetados pelo ciclone Yaku e os estragos causados por outros fenômenos naturais gerados pelo El Niño não recebem os recursos que necessitam.
Congresso do Peru
Presidente peruana Dina Boluarte escapou de processo de impeachment, que acabou sendo arquivado neste mês de abril
O advogado do diabo
Vou bancar o advogado do diabo, sabendo que meu “cliente” nem vai tentar me entender. Pedir que os parlamentares pensem no Peru seria uma utopia, mas pedir que pensem neles mesmos, e no Peru por tabela, talvez possa funcionar.
Aqui estão minhas recomendações de cidadão comum:
1. Destituam Dina Boluarte. Motivos não faltam: 49 peruanos vítimas de execuções extrajudiciais, incompetência [incapacidade moral e material] para governar, estupidez na política exterior, entre outros. Continuar a protegê-lo torna o Congresso cúmplice venal de crimes contra a humanidade. Eles são tão burros que não entendem ou estão fingindo?
2. Mudar a Mesa Diretora do Congresso. Moral e politicamente, é insustentável manter um presidente acusado de homicídio qualificado, um primeiro vice-presidente exposto por manter luxos de realeza colonial e seu segundo vice-presidente acusado de corrupção e tráfico de influência.
3. Eleições antecipadas com reformas políticas. Ainda que não sejam muito populares, refrescariam o debate e dariam esperança de estabilidade ao Peru a médio e longo prazo.
3.1. Reeleição imediata dos congressistas. A medida vai gerar indignação na população, mas, de olho no futuro, o destino do Peru não pode ser associado ao descrédito do parlamento. Os atuais congressistas, por mais tontos e servis que tenham sido, com certeza aprenderam alguma coisa e só o povo saberá julgá-los.
3.2. Regime Bicameral do Parlamento. Outra proposta que causará polêmica, porque o povo acredita que qualquer proposta vinda do Congresso está busca satisfazer apenas “os canalhas e preguiçosos” dos parlamentares, eles próprios. Ainda assim, novamente vale a máxima de que é preciso tentar sair da atual situação de crise política, e nesse caso, um congresso com duas câmaras é melhor do que um com uma só, segundo o que se observa na esmagadora maioria dos congressos do mundo.
3.3. Maior participação de partidos. Reduzir o mínimo de assinaturas para o registro legal dos partidos e dar facilidades para que o maior número de organizações políticas possa participar das eleições. Não faz sentido que apenas partidos de direita e extrema-direita participem.
3.4. Deixar de incomodar e tentar instrumentalizar os organismos eleitorais e a Defensoria Popular. Os partidos que fizerem bem o seu trabalho podem ganhar as eleições, mas continuar com a mesma lógica de querer utilizar o poder para ganhar à força não faz sentido.
3.5. Melhorar a representação territorial. Os atuais 130 congressistas são pouco para representar corretamente o Peru atual. Mesmo que fizessem um bom trabalho [e não o fazem] seria muito difícil atender adequadamente os 33 milhões de peruanos de várias nacionalidades. Basta olhar para as experiências bem sucedidas no mundo em termos de representação.
3.6. Renovação por terços. Para que o povo realmente exerça seu poder, deve-se estabelecer a renovação por terços, ou outra fórmula pela qual cada deputado eleito possa ser premiado ou censurado.
3.7. Estabelecer sanções para aqueles que desertam dos seus partidos. Quem renuncia à legenda que o elegeu também deve deixar o cargo e ser substituído pelo seguinte da lista. Essa é uma política saudável de fortalecimento partidário.
4. Acabar com a imunidade parlamentar, ou suspender do cargo, todos os parlamentares que tenham indiciamentos e currículos com graves acusações de corrupção, tráfico de influência e envolvimento com “organizações criminosas”.
5. Incorporar, no projeto de convocar de eleições antecipadas, uma consulta popular sobre a possibilidade de se fazer uma assembleia constituinte.
Mesmo que tudo isso aconteça, o Congresso não recuperaria seu prestígio. Isso é materialmente impossível. Talvez fizesse a rejeição cair para 88% ou 89%. Não se deve alimentar ilusões, mas sim estar cientes de que, por tudo o que fazem, não merecem nenhuma consideração do povo. Contudo, ao menos podem melhorar essa cara monstruosa que exibem hoje.