Segundo o Instituto de Estudos Peruanos (IEP), em pesquisa publicada no dia 2 de fevereiro, 69% da população consultada quer uma nova Constituição. Mas esses dados, sensíveis para qualquer democrata, não interessam ao governo cívico-militar de Dina Boluarte.
Para ela e seu chefe de gabinete, Alberto Otárola, a democracia passa por parâmetros definidos pela extensa e sofisticada estrutura de repressão instaurada nestes dois meses de governo, com saldo de 63 mortes por ação da Polícia Nacional do Peru (PNP). Essa é a forma que eles deram à “democracia”, esse peculiar instrumento de ceifar a vida dos que se manifestam nas ruas, praças e estradas do país.
As manifestações pelo fim da atual Constituição imposta em 1993 – pelo então ditador Alberto Fujimori – não são algo novo no Peru. Ela remonta ao governo de transição de Valentín Paniagua (2000-2001), logo após a queda do corrupto regime fujimorista.
Paniagua assumiu a liderança do país com conduta democrática impecável. Seu primeiro ato de importância histórica foi caracterizar a Carta Magna de 1993 como um “estatuto de ocupação”, pelo qual os monopólios e oligopólios tomaram conta do país.
Em seus oito meses de governo, o presidente transitório chegou a trabalhar em uma nova Constituição. Não só decidiu que iria derrubar o texto de Fujimori como também, refletindo o sentimento da cidadania, constituiu uma comissão do mais alto nível político, profissional, ético e moral para elaborar as bases de uma nova Carta Magna para substituir aquela que abalou os pilares do estado de direito, da institucionalidade e da moralidade pública.
A comissão tinha três tarefas: propor as normas constitucionais a serem reformadas, sugerir opções para o conteúdo dessas reformas e propor o procedimento para o desenvolvimento das reformas propostas.
O grupo cumpriu com essa missão e seus resultados foram entregues ao presidente seguinte, Alejandro Toledo, vencedor das eleições organizadas por Paniagua.
Na campanha eleitoral, Toledo prometeu mudar a Constituição de 1993, mas, na prática, ele nem tentou cumprir a promessa, e o mesmo aconteceu com todos os presidentes eleitos depois dele, inclusive Pedro Castillo. Todos eles foram facilmente cooptados para o sistema.
Razões que emergem hoje sem atenuantes
Após 30 anos de vigência da Constituição de 1993, com recorrentes traições de quem chegou ao governo prometendo mudá-la, o povo peruano mostra seu cansaço diante de uma classe política que deixou de ser veículo de representação popular para se tornar instrumento de gestão de interesses em todo o aparato público, transformando o Legislativo e o Executivo em antros dominados por burocratas, ladrões e corruptos.
Enquanto isso, a grande maioria dos peruanos foi cinicamente enganada, negligenciada, marginalizada e maltratada com mecanismos de opressão social onde o racismo e o classismo mal são ocultados.
Está claro que a atual Constituição blinda a todo custo o neoliberalismo aplicado no Peru que, segundo seus apologistas, havia se tornado “o país mais bem-sucedido” da região, fruto do “milagre econômico” derivado de “20 anos de média anual, com crescimento de 5%”, bem acima da média latino-americana.
É claro que esse crescimento e seus ostensivos indicadores macroeconômicos “geraram inveja” nos vizinhos. Se fosse esse o caso, por que a cidadania no Peru está se mobilizando em massa hoje? Como explicar aos milhões de peruanos que não sentem os benefícios dos opulentos indicadores macroeconômicos? Pior ainda, como explicar nossa absoluta precariedade nos sistemas de saúde e educação expostos pela pandemia? E muito mais grave ainda, como explicar que, com tanta riqueza produzida, sejamos o quarto país mais desigual do mundo? Como explicar a ele que 1% da população concentra 45% da renda do país? Após essas perguntas, devemos buscar as razões do movimento de massas que temos hoje no Peru.
Vejamos alguns números do “milagre econômico” do país, segundo estudos do Instituto Nacional de Estatística e Informática do Peru (INEI):
• EM 2021, mais de 8,4 milhões de pessoas (26% da população total do país) vivia na pobreza. Estima-se um valor maior em 2022. No sul do país, onde os protestos são mais intensos, esse indicador é de 39%.
• Isso significa que milhões de peruanos não podem comprar nem mesmo a cesta básica familiar de alimentos, tampouco financiar roupas novas, transporte, saúde e educação, com consequências quase fatais para a saúde, especialmente em pessoas que sofrem de doenças crônicas.
• A taxa de informalidade desse segmento da população é próxima a 100%, a maioria em regime de auto sustento familiar, com alto índice de trabalho infantil, baixa qualidade educacional e falta de água potável e esgoto.
Essas são algumas das razões pelas quais o povo peruano se mobiliza. O atual governo “não entende” isso e responde com repressão criminosa e militarização das regiões que protestam, justamente, pela situação de pobreza e esquecimento em que se encontram.
Constituição de 1993, um tributo ao entreguismo
Em qualquer Constituição, o capítulo que trata do regime econômico constitui uma de suas colunas vertebrais. O que a Constituição peruana de 1993 traz é a mais cínica renúncia à soberania econômica e empresarial de um Estado-nação. Por isso o governo de Paniagua o caracterizou como um “estatuto de ocupação”, porque após 30 anos de vigência, o Estado regulador é quase inexistente, enquanto o setor privado monopoliza tudo o que pode e impõe a ordem da fantasmagórica “economia social de mercado”.
Reprodução/ CGTP Central Geral de Trabalhadores do Peru
Manifestações no Peru pedem a saída de Boluarte e novas eleições no país, junto com uma Assembleia Constituinte
Por limitações de espaço, trataremos de alguns dos 32 artigos que constituem esse regime de tributo ao entreguismo. Vejamos:
O artigo 58 reconhece que “a iniciativa privada é livre” em uma “economia social de mercado”. Também aponta que “a fonte de geração de riqueza é o investimento e o capital”, ignorando que o trabalho é a principal fonte de geração de riqueza, e não estabelece que a “livre iniciativa privada” deve estar em harmonia com o interesse social. Tampouco fala em “redistribuição justa” das riquezas, como estabelecia a Constituição de 1979 [em seus artigos 115 e 110].
Por sua vez, o artigo 61 diz que o Estado garante a “livre concorrência” combatendo o abuso de monopólios e a concentração da imprensa. Este mandato, como se pode constatar facilmente, é letra morta. A livre concorrência não existe no Peru. Portanto, são os monopólios e oligopólios que administram todos os mercados. E com relação à imprensa, setor de uso e interesse públicos, 80% da mídia está concentrada nas mãos da família Miro Quesada. Que liberdade de expressão e pensamento se poderia esperar desse grau de concentração?
É a expressão mais clara do entreguismo que norteia esta Constituição o artigo 62 , pois afirma que o Estado garante e assegura que os “contratos-lei” não sejam modificados nem mesmo com outra lei. Hoje, a maior parte da exploração de recursos naturais do Peru está nas mãos de empresas transnacionais, sob a proteção deste tipo de contrato. Nem uma palavra é dita sobre a responsabilidade social das empresas e seus deveres para com o desenvolvimento nacional. Este artigo mostra claramente que a tal “economia social de mercado” é um parágrafo ilusório que disfarça o poder das empresas no Peru.
Já o artigo 66, ao se referir à exploração dos recursos naturais, embora se refira a estes como “patrimônio da nação”, também se dedica a reconhecer o “direito real de propriedade” das empresas concessionárias sobre os mesmos, com o qual se estabelece uma renúncia à soberania e propriedade do Estado, outrora defendidas pelo artigo 118 da Constituição de 1979, que dizia ser o Estado “o soberano proprietário dos recursos e fontes de energia”.
O Artigo 69 diz que a Amazônia será desenvolvida com “legislação adequada”, mas não estabelece a obrigatoriedade de regimes especiais ou instituições especializadas conforme estabelece a Constituição de 1979 em seu artigo 120.
No artigo 70 diz que o Estado garante a inviolabilidade do direito de propriedade, em “harmonia com o bem comum”, mas não indica limitações desse direito quando se trate de bens de domínio e utilização públicas [estradas, fontes de energia, água, saúde e educação, comunicações, etc] e deixa ao “livre mercado” a sua “exploração econômica”. Agora vemos que esse uso é privilégio das grandes empresas, principalmente as transnacionais, amparadas pela Carta Magna. Esse e outros escudos permitiram as concessões feitas à transnacional Odebrecht, que espalharam a corrupção no âmbito público e privado.
O artigo 88 estabelece um regime agrário lacônico, pelo qual “é garantida a propriedade privada no campo”. E ponto. Enquanto na Constituição de 1979 havia todo um capítulo que, além do direito à propriedade privada (plural), priorizava o “desenvolvimento integral” do setor agropecuário, além de garantir o “apoio econômico e técnico” para melhorar produção e produtividade, fomentar a agroindústria e estabelecer seguro agrícola contra riscos. Da mesma forma, a Carta Magna anterior estabeleceu que a reforma agrária continuará sendo o instrumento de “transformação da estrutura rural” com “atenção integral ao homem do campo”. Nada disso aparece no documento de 1993.
O artigo 89 estabelece que as comunidades camponesas e indígenas têm personalidade jurídica e podem vender suas terras no mercado de livre concorrência. Se a situação não fosse dramática, aquele mandato deveria provocar um sorriso incrédulo. Enquanto a Constituição de 1979 estabeleceu que “o Estado respeita e protege as tradições das comunidades camponesas e nativas”, as empresas comunais e cooperativas foram incentivadas no âmbito de uma abordagem de desenvolvimento abrangente. Além disso, foi dito que as terras comunais são “inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis”. É claro que a Constituição de 1993 deixa tudo para o mercado, que, como já vimos, está sob o controle de monopólios e oligopólios em todos os ramos da atividade econômica.
Para terminar este breve resumo, é revelador como a Constituição de 1993 santifica as empresas privadas, despojando-as de qualquer responsabilidade social que, algo que estava sim estabelecido no texto de 1979, que afirmava que “a contribuição para o bem comum por parte das empresas são exigidas pelo Estado”, sem deixar de reconhecer sua liberdade de comércio e indústria, mas advertindo que essa “não pode ser contrária ao interesse social, nem prejudicial à moral, à saúde e à segurança pública”.
Dessa forma, a Carta Magna anterior proibiu terminantemente monopólios e oligopólios, com destaque para a concentração na imprensa e na mídia.
Assembleia Constituinte
O Legislativo e o Executivo, em sua interpretação particular de “democracia”, recusam-se a reconhecer as expressões populares que estão refletidas e em estudos especializados sobre a opinião da sociedade peruana a respeito da necessidade de uma constituinte.
Nesse sentido, entre maio de 2022 e janeiro de 2023, o aumento da aprovação cidadã a essa iniciativa foi notável, e seus números são inquestionáveis: em menos de um ano, esse apoio popular passou de 47% para 69%.
Se Boluarte e seu ministro-chefe Otárola respeitassem as reivindicações do povo, o governo deveria estar atendendo a esse clamor que se expressa, não só nas urnas, mas também nas ruas, nas praças, nas estradas e no campo. Mas, estamos vivendo a calamidade de ter um governo civil-militar que, ao invés disso, atira para matar aqueles que ousam questionar sua legitimidade e permanência.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.