A morte de seis soldados [“pequenos soldados”, como são carinhosamente chamados pela imprensa, em referência ao fato de que eram jovens de entre 16 e 20 anos] que se afogaram no rio Ilave, na região de Puno, a quase 4 mil metros acima do nível do mar, tem como únicos responsáveis os altos oficiais que, sem motivo e longe das ameaças maniqueístas de linchamento, deram a ordem para que os garotos atravessassem o rio levando todo o seu equipamento: mochilas, coletes à prova de balas, armas, mantimentos e outras pesadas bagagens.
Se para quem sabia nadar aquele peso exigia esforços extraordinários para chegar à outra margem, é fácil imaginar a angústia e o desespero de quem não sabia nadar e, após minutos de luta para se manter vivo, sucumbiu em águas geladas do Ilave. Com estas perdas, o Peru acumula quase 70 mortos na luta contra a ditadura civil-militar liderada pela marionete Dina Boluarte.
No Exército, a primeira coisa que se ensina é obedecer às ordens dos superiores “sem duvidar nem reclamar”. E foi isso que os soldados fizeram quando receberam ordem de atravessar o rio. Os oficiais, os “superiores”, não se importaram se eles sabiam nadar ou não. Para os soldados, era mais importante “obedecer”, como foi ensinado no quartel. Desobedecer ao “superior” era, para eles, um perigo maior do que a turbulência das águas do rio.
Os seis garotos que não sabiam nadar, mas sabiam obedecer, perderam a vida tentando atravessar um rio que tem força suficiente para arrastar e engolir quem ousa desafiá-lo. Eles não estavam preparados para esse desafio. Os “superiores” não se importaram com essa circunstância, principalmente o capitão Josué Frisancho, que comandava a patrulha e que coleciona denúncias de assédio sexual, além de violência física e psicológica. “Entrem, cachorros de merda”, foi a ordem escandalosa que Frisancho repetiu.
A imprensa hegemônica, a serviço da ditadura civil-militar, passou a propagar a falácia de que “a ordem dos altos oficiais havia sido dada porque grupos de manifestantes os seguiam e estes seriam linchados se não chegassem urgentemente à outra margem. Versão completamente falsa. Não há como provar essa afirmação. A região abriga comunidades indígenas aimaras, que apesar de estarem mobilizadas contra o governo, conhecem melhor que os militares a força do rio e os riscos em atravessá-lo. Além disso, a violência não faz parte da sua cultura, e as mobilizações pacíficas que realizaram nos últimos 70 dias de luta comprovam isso.
A tentativa de demonizar a população aimara, confundindo sua bravura com selvageria, está sendo desmantelada tanto no Peru quanto no exterior, não só pela imprensa alternativa, mas também pelos próprios protagonistas dos acontecimentos. Nenhum material audiovisual, nem depoimentos dos diretamente envolvidos, inclusive dos militares que conseguiram sobreviver à força e ao frio das águas, dizem que havia ameaça iminente de linchamento, ou mesmo uma ameaça remota, já que a manifestação mais próxima acontecia a quase dois quilômetros de distância do rio.
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Puno fica no sul do Peru, no lago Titicaca, um dos maiores da América do Sul
A verdade é que nunca houve ameaça de linchamento. Os registros em foto e vídeo mostram um cenário onde nenhum ato de violência foi possível por parte das comunidades, enquanto os militares atiravam para o ar, tentando intimidar os fantasmagóricos “linchadores”, e ordenaram a travessia do rio, o que resultou em drama e dor para as famílias dos que não conseguiram sobreviver à missão.
No local dos acontecimentos encontrava-se um destacamento de quase 50 militares, enquanto 25 ou 30 moradores da comunidade estavam dispersos, perambulando pelos arredores, observando com curiosidade a perplexidade e confusão dos militares e seus “superiores”.
Assim, as dúvidas pendentes são as seguintes: por que os oficiais que deram a ordem de atravessar o rio permaneceram na mesma margem sem terem sido vítimas de linchamento? Por que os destemidos oficiais só assistiram a cena, enquanto os membros da comunidade desceram dos morros próximos para tentar ajudar os soldados a atravessar o rio? Por que foram esses mesmos comunitários os que atuaram para recuperar os corpos indefesos dos afogados? Por que, depois de dar as ordens e observar o que os comunitários, principalmente as mulheres, faziam para ajudar os soldados, os oficiais caminharam orgulhosos em direção aos seus abrigos? Não há como fugir das responsabilidades dos oficiais do Exército, sob o comando supremo da presidente Boluarte.
Esse acontecimento mostra, pela enésima vez, que a ditadura civil-militar não compreende a cultura e a história dos aimaras, sua tradição de luta e os motivos que a movem hoje. Não buscam esmolas, como alega a estúpida versão oferecida pelo governo, com sua narrativa de “choque de investimentos”.
A paz e a democracia, dizem os aimarás, não se compram nem se vendem, não fazem parte do “livre mercado”. Nem o poder Executivo, nem o Legislativo, são capazes de vislumbrar o que está acontecendo na região de Puno. Boluarte e seu séquito de fascistas não entendem que oferecer presentes é um insulto à dignidade aimara, é uma afronta aos seus valores. Não percebem que a luta que o povo de Puno está travando é profundamente política e questionadora da ordem estabelecida.
A outra realidade
Enquanto a sociedade peruana processa o caso, há de se considerar alguns fatores:
• Para cada um dos 130 representantes do Congresso, uma casa com 91% de rejeição, se oferece três refeições diárias, cada uma custando 80 soles (mais de US$ 21) pago por todos os peruanos. Ao mesmo tempo, mais de 30% dos peruanos têm renda insuficiente para comer uma só refeição de três soles (US$ 0,8). E Boluarte não entende por que o povo peruano está reclamando.
• A máquina repressiva é polida com dispositivos legais que protegem aqueles que usam armas de fogo da maneira que estão fazendo até agora. Mas nada disso impede as marchas e mobilizações. Em Puno, não estão mais sozinhos e a “segunda onda” de manifestações chegará a Lima.
• Não basta os militares ocuparem as principais cidades e rodovias do país com o apoio de helicópteros de combate. Tudo indica que uma eleição antecipada e a convocação de uma Assembleia Constituinte seriam os fatores determinantes para uma paz com promessa de democracia.
• Diante das evidências inquestionáveis de que crimes contra a humanidade foram cometidos no Peru, Boluarte e sua comitiva de fascistas tentam escapar de sua responsabilidade culpando o Exército e a polícia pela morte de quase 70 peruanos. Eles dizem que “não foram informados das operações” de massacres e execuções extrajudiciais.
• O Ministério Público e o Judiciário, caricaturando a Justiça ao extremo, realizam maratonas para incriminar Pedro Castillo por “rebelião”, “associação ilícita”, “corrupção” ou por qualquer coisa que justifique sua “prisão preventiva”. Continuam a usar o “fantasma do comunismo” como o grande argumento para perseguir os líderes que se opõem ao regime.
• A Justiça Eleitoral, graças ao servil Tribunal Constitucional, está agora sob controle político exercido pelo deslegitimado Congresso. Acabou a autonomia do ente eleitoral.