Fazendo uma média entre as pesquisas IPSOS, IEP e CPI, observa-se que mais de 74% da cidadania desaprova a gestão do governo liderado por Dina Boluarte. O repúdio ao Congresso da República é ainda maior, cerca de 91%. Enquanto isso, e diferente do que afirmam esses “poderes”, 57% da população quer uma Assembleia Constituinte e 82% quer que as próximas eleições gerais aconteçam ainda em 2023. A margem de erro é de 2.8% e o grau de confiança das pesquisas é de 96%.
As marchas massivas no interior e nos centros urbanos, dezenas de estradas interrompidas, vaias a ministros que são expulsos de locais públicos (apesar dos aparatos de segurança preparados para se defender das “turbas”) após falarem em “soluções” para a crise. Todos esses episódios confirmam a veracidade dos números mostrados pelas pesquisas. O governo não percebe que seu populismo desajeitado, baseado em auxílios financeiros que parecem esmolas, acaba inflamando ainda mais os cidadãos, que se sentem insultados em sua dignidade, enquanto a “ameaça de revolta” amadurece com ritmos e velocidades próprias.
E, no entanto, o Executivo e o Legislativo continuam imperturbáveis, como se não ligassem para a rejeição por parte da opinião pública, governando e legislando como se nada estivesse acontecendo no Peru. A burocracia dirigida por Boluarte, em cínica coordenação com o Congresso (liderado por um ex-militar acusado de violações dos direitos humanos), decidiu ignorar essa situação, confiando às Forças Armadas e à Polícia Nacional a tarefa de “manter a ordem e a segurança” a fogo e sangue, enquanto eles se dedicam a justificar por todos os meios sua meta de permanecer no poder até 2026.
Já são mais de 100 dias de protesto popular, com sinais de rebelião em Puno e Cusco. Não há sinais de que a convulsão social esteja diminuindo. Em todas as regiões, as demandas são as mesmas: renúncia de Boluarte, fechamento do Congresso, eleições antecipadas e uma Assembleia Constituinte.
Todos os analistas, mesmo os governistas, concordam que as dimensões e o alcance da mobilização superam as marchas de julho de 2000, que levaram à queda do regime de Alberto Fujimori, e mais ainda as de novembro de 2019, que forçaram a renúncia de Manuel Merino.
Presidência do Peru
Dina Boluarte e setores aliados com semblantes que escondem sua altíssima rejeição, segundo as pesquisas
Então, por que os protestos populares desses 100 dias de 2023 não tiveram a mesma eficácia que os casos mencionados? Aqui vão algumas respostas:
- “Fora do poder, tudo é ilusão”. A direita política e empresarial está ciente do significado dessa citação. Por isso, conseguiu reunir em torno de si um aparato que reúne o poder político, militar e o Judiciário [incluindo o Tribunal Constitucional], estabelecendo uma ditadura civil-militar com força suficiente para neutralizar o movimento de massas, independentemente de ter sido necessário acabar com a vida de 70 peruanos que se manifestaram pacificamente. Além disso, essa aliança político-judicial-militar conta com o apoio explícito dos Estados Unidos.
- Da mesma forma, mas do outro lado, a frase “fora do poder, tudo é ilusão” volta a torna-se plenamente válida quando vemos a possibilidade de derrota do movimento popular, já que esse não possui poder político ou econômico. Um movimento popular, privado desse poder, não assegura vitórias. Se, além disso, o movimento não possui uma estrutura orgânica que lhe permita unir suas mais diversas expressões, então a derrota é iminente. Se, além disso, o movimento não tiver uma liderança política firme, então a derrota se torna realidade.
- A Assembleia Nacional dos Povos (ANP) e o Comitê Nacional Unificado de Lutas do Peru (CONULP) tentam, à sua maneira, processar o significado daquela frase de Vladimir Lênin enquanto olham uns para os outros. Pelo seu desempenho, parece que ainda não entendem, e sua vaidade e arrogância os leva a direções diferentes. Nem um nem outro percebem que não basta a vontade de ir às ruas ou de parar as estradas para “derrubar o poder de Dina”. Tampouco é suficiente a coragem de homens e mulheres que, heroicamente, enfrentam a repressão dos militares e dos policiais de peito aberto. Em suma, ficou demonstrado que o “movimento pelo movimento” não é suficiente quando está em jogo o poder, e a luta é colocada em termos políticos.
- O sindicalismo e o movimento social, patrocinados pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP) e abrigados na ANP, não conseguem superar a fragmentação e a anemia impostas a eles pelo neoliberalismo. Por outro lado, a Frente Ampla e os grupos políticos regionais ativaram o mecanismo da “autoconvocação”, dando vida ao CONULP. Essas organizações assumiram a “liderança” da manifestação popular, reivindicando para si “direitos e razões” não só para liderar as lutas em curso como para rejeitar terminantemente a “presença de partidos políticos” [exceto o Partido Comunista Peruano, que continua a controlar a enfraquecida CGTP]. Em concreto, a ação dessas duas “cabeças”, ao invés de fortalecer a unidade do movimento, acaba por enfraquecê-lo, e os demônios da divisão voltam a assombrar os setores populares. A direita aplaude cinicamente, encorajando a “democratização” do movimento popular.
- Os partidos políticos que se proclamam de esquerda não aprenderam as lições de 30 anos de luta popular. Nas eleições de 2021, Pedro Castillo e seu partido, Peru Livre, cometeram o grosseiro erro de acreditar que “conquistaram o poder”. Logo perceberam, depois do período inicial da “embriaguez do poder”, que chegar ao governo não lhes permitia controlar o poder, que, entre outras coisas, exigia organização e liderança política que faltavam aos “vencedores”. O poder ainda estava nas mãos da direita política e empresarial. O apoio popular que Castillo e o Peru Livre tiveram foi desperdiçado da pior maneira. Os demais setores de esquerda começaram apoiando governo de Castillo [com exceção dos partidos Juntos Pelo Peru e Novo Peru], mas foram se distanciando conforme surgiam casos de corrupção, e quando foi ficando cada vez mais evidente a mediocridade de sua atuação política. A catástrofe do governo de “esquerda”, com a força de manchar todo esse setor, era apenas uma questão de tempo. E, quando menos se esperava, se consolidou com o golpe fracassado de 7 de dezembro de 2022.
- O papel da imprensa tem sido fundamental na estratégia da direita de apoiar Boluarte. Transformando verdades em mentiras, ou distorcendo-as em favor da ditadura civil-militar. A imprensa concentrada conseguiu instalar uma sensação de perplexidade e desconforto nas massas, questionando os objetivos de sua luta e, simultaneamente, defendendo as “bondades” do “império da lei”. Ademais, foi preponderante na tarefa de relativizar os massacres que ceifaram as vidas de 70 manifestantes. A imprensa alternativa, numa luta desigual, não tem força suficiente para contrariar esse gigantesco aparato midiático que, sem o menor pudor, se colocou a serviço da ditadura.