Dizer que “sou a chefe suprema das Forças Armadas” e, em seguida, no mesmo discurso, afirmar que “não sou quem comanda” é a última genialidade de Dina Boluarte. Tão absurda quanto dizer que “não sei porque as pessoas protestam”, diante das manifestações populares contra o seu regime, ou “Puno não é o Peru”, ao constatar que aquela região mostrou um espírito de luta mais consistente e resistentes.
Distraída, quase à beira da loucura, a cada vez mais ilegítima presidente do Peru colocou-se incondicionalmente à disposição da ultradireita política e econômica, que assumiu todos os poderes.
A declaração de Boluarte surgiu diante de uma pergunta sobre sua responsabilidade pelas “execuções extrajudiciais” e “massacres” relatados pelo informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os fatos ocorridos durante os protestos no Peru desde dezembro de 2022. Trata-se, claramente, de uma tentativa de responsabilizar as Forças Armadas pelas violações descritas no referido relatório e tentar lavas as mãos, como um Pilatos andino, na iminência de ser acusada como “autora mediata” dos fatos.
É inegável a responsabilidade de Boluarte na morte de 70 peruanos, 49 deles executados extrajudicialmente por membros da Polícia Nacional ou das Forças Armadas, e ela terá que enfrentar os processos judiciais e criminais a respeitos desses casos. Diferentes setores da sociedade civil peruana concordam que essas mortes não têm justificativa, e que, mais cedo ou mais tarde, os responsáveis serão identificados e processados.
Antes do informe da CIDH, os “crimes contra a humanidade” já haviam sido denunciados por um grupo de instituições e organizações internacionais envolvidas com os direitos humanos, incluindo a Organização das Nações Unidas (ONU), Human Rights Watch, Organização dos Estados Americanos (OEA), União Europeia e Anistia Internacional, além do diário norte-americano The New York Times. Todos concordam que no Peru, entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023, ocorreram violações aos direitos humanos, atribuíveis ao direito internacional, conclusão que não pode ser grosseiramente subestimada sob a alegação de que sofre de “viés político”.
A questão agora é buscar o apoio da extrema direita ou da direita “que pensa”. Segundo o jornalista Juan Carlos Tafur, defensor dos interesses da direita, Boluarte está “ignorando as sugestões da direita pensante”, na gestão da crise política e social do país. Fingir culpar as Forças Armadas pelos massacres e execuções extrajudiciais, eximindo-se da responsabilidade que tem como comandante suprema, não passa de uma vã tentativa de impunidade, que pode ser muito pior, caso provoque uma compreensível reação de “espírito de corpo” entre os militares – que, ao menos até agora, estão apoiando o seu governo. Não é muito difícil perceber que os porta-vozes dos militares e policiais aguardam a ordem para declarar a “chefe suprema” como traidora.
Processo de investigação em dúvida
Os procuradores encarregados de investigar as circunstâncias em que mais de 70 pessoas morreram durante as manifestações não parecem ter muito interesse em fazê-lo, já que, três meses após o início do processo, ainda não há resultados concretos, apesar das muitas provas contundentes acumuladas mostrando que policiais e militares usaram suas armas “desproporcionalmente”, atirando para matar indiscriminadamente, e que nenhuma das vítimas teria colocado em risco a vida dos agentes do Estado.
Reprodução/ @presidenciaperu
Declaração de Boluarte é uma tentativa de responsabilizar as Forças Armadas pelos massacres no país
Enquanto todos os processos de investigação estiverem sob o comando da procuradora geral Patrícia Benavides – peça-chave do esquema que levou a extrema direita ao poder e disposta a manter seu status – a esperança de ter resultados logo se torna uma ilusão. Então, deve-se esperar que a sociedade reaja com uma estratégia melhor, colhendo as lições das lutas do passado recente.
A democracia na UTI
Para alguns, a Constituição de 1993, imposta pelo então ditador Alberto Fujimori e vigente até hoje, permitiu o “crescimento sustentado” da economia. Contudo, não se pode negar que ela também foi a causa de desigualdades e brechas de pobreza que atingiram níveis sem precedentes na história do Peru. Esta situação, por si só, é um dano profundo para a democracia e explica porque o país teve seis presidentes nos últimos cinco anos, e o fato de que quase todos eles terminaram presos ou com processos judiciais que acabarão por condená-los para o resto da vida.
Depois de 7 de dezembro de 2023, com o golpe fracassado de Pedro Castillo e o efetivo contragolpe da maioria direitista no Congresso, com ambos os lados quebrando todas as regras possíveis, a democracia passou a ser bombardeada pelos poderes fáticos, transformando o Legislativo em um esquadrão de assassinos políticos avançados e o Executivo em administrador da equipe de logística, dominação e controle da cidadania.
Hoje, mais do que nunca, vale aquela frase de que só o povo salvará o povo e, por extensão, essa democracia precária ao extremo. Por outro lado, os cidadãos, depois das heroicas lutas populares que acabaram recuando por falta de liderança política, acostumaram-se a ver essa situação como algo normal.
A chefe suprema e as Forças Armadas
Depois de tentar se desmarcar da Polícia Nacional e das Forças Armadas, acusando-as de terem cometido violações aos direitos humanos à sua revelia, Boluarte, presidente acidental do Peru, apela ao seu desenvolvido sentido de cinismo e, sem pestanejar, “confirma sua confiança” nessas instituições, em um ato francamente grotesco.
Basicamente, ela quis dizer que ser a comandante suprema não lhe dá o poder de comandar as Forças Armadas. Falso. Segundo a Constituição, a pessoa que ocupa a Presidência da República possui poderes de comando muito específicos sobre as Forças Armadas, pelo que está longe de ser um cargo honorário, como insinua a mandatária.
Ela tinha o poder de dizer “não façam o que estão fazendo”, ou seja, matar manifestantes, mas ficou calada. E não só isso, recompensou a “atitude patriótica” de policiais e soldados com prêmios em dinheiro.
A liderança suprema reconhecida pela Constituição (em seu artigo 167) supõe a subordinação de policiais e militares à Presidência. Portanto, é um insulto às Forças Armadas dizer que ela não tem “comando”. A “liderança suprema” é o reconhecimento constitucional da hierarquia máxima na estrutura das Forças Armadas. Logo, não há como negar que Boluarte, como comandante, função que lhe cabe como presidente do Peru, cometeu sim crimes por sua responsabilidade nos atos realizados por aqueles que são seus subordinados, policiais e militares, que mataram manifestantes nas ruas do país.
Tentar se livrar dessa responsabilidade é quase uma traição, política e moral. Mesmo que não se possa provar que ela deu ordem para atirar, pode-se comprovar que ela não fez nada, como comandante suprema, para impedir que a onda de execuções extrajudiciais e massacres continuasse, e durasse semanas. Pelo contrário, tanto ela como o seu ministro-chefe, Alberto Otárola, aplaudiram a repressão criminosa que “restaurou o princípio da autoridade e defendeu a democracia”, segundo suas palavras em fevereiro.