A história de Alejandro Toledo parece um conto de ficção, mas é muito mais patética e repulsiva do que o contado no livro Cholo Sagrado, escrito por sua esposa, Eliane Karp.
A palavra “cholo” em espanhol serve para designar os mestiços entre povos originários ameríndios e brancos europeus. Há 23 anos, eu fui um dos milhões de peruanos que acreditou nessa imagem de um Toledo que identificava a maioria do povo e que reivindicaria suas raízes, além de livrar o país do domínio de monopólios e oligopólios que vinham atuando impunemente há décadas.
Ademais, acreditávamos que ele chegaria para recuperar a democracia no Peru, ainda que parcialmente, mas ao menos geraria um cenário melhor do que o deixado pela corrupta e macabra ditadura de Alberto Fujimori.
A cena de Toledo encabeçando apoteoticamente as marchas pelo fim do regime fujimorista, naquele histórico ano 2000, adquiriu dimensões que semearam esperança e orgulho de ser “cholo”. Fomos muitos os que nos ilusionamos com um Peru com respeito às suas próprias raízes e, sobretudo com um projeto próprio, livre das ataduras econômicas, financeiras e políticas nacionais e internacionais.
Tudo isso se perdeu quando a corrupção começou a corroer a entranhas do “cholo sagrado” de forma irreversível.
Seu governo se caracterizou por uma corrupção generalizada e também por uma enorme incompetência e cinismo, gerando mais miséria no país e submetendo o Executivo aos poderes de fato, que souberam aproveitar a situação, convertendo o mandatário em um títere sem nenhuma capacidade de comando, submetido aos interesses alheios e à sua própria cobiça.
Ao final, os métodos de Toledo e seus resultados na gestão pública o situam na história do Peru como um espécime quase similar a Fujimori, que se tornou seu vizinho, agora que ambos vivem em celas próximas, localizadas no mesmo presídio. Definitivamente, o mundo dá voltas com extrema rapidez.
Um pouquinho de contexto
Toledo foi eleito presidente do Peru em 2001, aclamado pelas multidões que levaram Fujimori a renunciar no ano anterior e prometendo reconstruir o país econômica, política e institucionalmente. Porém, poucos dias após a posse, ele passou a regurgitar o estúpido discurso de que seu governo precisava “reconhecer os avanços do período fujimorista”. Dizia que o ditador havia legado “o primeiro piso de um edifício, e que agora temos que construir os demais”. A partir de então, nunca mais questionou os problemas deixados por seu antecessor e seu governo passou a ser o contrário do que ele havia prometido.
Seu mandato durou até 2006 e foi fortemente influenciado pelos poderes fáticos, além de protegido pelos grandes meios de comunicação que, em troca de suculentos contratos de publicidade estatal, encobriam seu gosto por bebidas finas e sua participação em orgias. Havia críticas ao seu governo na imprensa, mas eram leves e efêmeras, devido ao poder dos setores que desfrutavam de sua influência sobre o presidente.
Além disso, quando o governo cometia um erro impossível de justificar, bastava lembrar seu passado de “esquerdista” e colocar a culpa do problema nos setores progressistas peruanos – que não eram necessariamente apoiadores do seu governo.
Na campanha, Toledo soube utilizar sua origem humilde para gerar identificação com o eleitorado. Seu passado como engraxate e filho de camponeses do interior do país foram a base argumentativa do apelido “cholo sagrado”, eternizado no livro de Karp, e o elevou ao status de “acidente estatístico”, um mestiço peruano que estudou em Harvard e voltou de lá falando espanhol com sotaque gringo.
Com o passar dos anos, ele foi destruindo qualquer vínculo com sua “choledade” peruana. Como presidente, Toledo se aproveitou de todos os privilégios, até mesmo dos luxos que o transformaram em um personagem ridículo para os brancos que mantêm o poder no Peru e o veem como uma anedota na história do país.
Os mestiços peruanos, como eu, passaram a ver em Toledo uma figura que roubou um pouco da nossa identidade. Ele a dilapidou, ao se transformar em um arrivista adocicado, cujo objetivo principal foi tornar-se parte do banquete dos ricos. Se ufanava de tomar uísque com rótulo azul, de comer em restaurantes com cinco garfos, mas escondia o miserável costume de ser um presidente que frequentava hotéis de quinta categoria em seus “encontros amorosos” com prostitutas.
Agência Andina
Toledo conservou o legado da ditadura de Fujimori, frustrando milhões de peruanos que acreditaram em seu discurso nas eleições de 2001
Em janeiro de 2017, quando já havia provas suficientes para ordenar judicialmente a prisão do ex-mandatário, ele decidiu fugir para os Estados Unidos, supondo que a Justiça peruana jamais o pegaria, já que estava amparado pela legislação da terra do Tio Sam. O plano acabou falhando.
Ao menos desta vez, os milhões de dólares que ele gastou para subornar funcionários da Justiça nos dois países não foram suficientes para evitar que Toledo fosse extraditado, para responder pelos delitos cometidos no Peru.
Do que Toledo é acusado?
Segundo o Ministério Público do Peru, Toledo cometeu crimes de coação, peculato, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Em resumo, ele recebeu, em diferentes contratos, o equivalente a US$ 30 milhões pagos pela empreiteira Odebrecht pela construção dos trechos dois e três da rodovia Interoceânica Sul [que tem esse nome porque liga o Litoral Sul peruano, na costa do Oceano Pacífico, com o Litoral Central brasileiro, na costa do Oceano Atlântico].
Também recebeu US$ 5 milhões de outra empresa brasileira, a Camargo Corrêa, que era cúmplice da Odebrecht no esquema.
A rodovia Interoceânica Sul trouxe o desenvolvimento ao Sul do Peru, como Toledo havia prometido? Não! A propaganda estatal ocultou os verdadeiros fins desse investimento multimilionário. Quase 20 anos após a inauguração da obra, a pobreza naquela região é igual ou pior que a de antes.
Por outro lado, devemos reconhecer que o Ministério Público atuou com a devida firmeza, sem titubear até que a extradição fosse confirmada. Também é importante destacar que Toledo vem recebendo ofertas para que sua pena seja diminuída.
“Se você se tornar um colaborador eficaz, os tribunais podem perdoar quase toda a sua pena”, prometeu a procuradora geral Patricia Benavides. Em outras palavras, dependendo da informação que ele entregar sobre a corrução em seu governo, Toledo [de 77 anos] poderia sair da prisão mais cedo.
A rota do dinheiro e a captura de Toledo
Na verdade, não houve uma verdadeira “captura de Toledo”, já que ele se entregou às autoridades norte-americanas. Ainda assim, no Peru, o fato foi relatado como de alguém que foi detido quando tentou fugir da Justiça.
O ex-presidente foi delatado por aqueles que foram seus amigos e cúmplices. Entre eles está o empresário israelense Josef Maiman, que recebeu US$ 35 milhões para ser o assessor de Toledo para temas de segurança. Ele entregou os documentos que revelaram a rota do dinheiro sujo proveniente das empreiteiras brasileiras Odebrecht e Camargo Corrêa.
Maiman usava as contas bancárias de três de sus empresas [Merhav, Warbury e Trailbrige], para transferir os montantes à Confiado Corp, entidade com sede no Panamá. Esta, por sua vez, enviava o dinheiro para outras duas empresa na Costa Rica antes de chegar ao seu destino final, as contas da empresa Ecoteva, propriedade de Toledo.
O outro “amigo” que entregou Toledo é Jorge Barata, que foi diretor-geral da Odebrecht no Peru. Ele confessou ter realizado os trâmites da propina paga para que a empreiteira ganhasse as licitações para a construção da rodovia Interoceânica Sul. O esquema também incluía ligações entre Barata e Maiman, que desenharam a estratégia financeira para encobrir o caminho trilhado pela propina até chegar a Toledo.
Somente no Peru é possível ter sete presidentes em seis anos, todos com processos judiciais nas costas e alguns deles na prisão. Isso sem contar o caso da eterna candidata Keiko Fujimori, que também já conheceu o frio ambiente dos presídios. Atualmente, Alberto Fujimori, Alejandro Toledo e Pedro Castillo estão na mesma penitenciária, todos eles acusados de corrupção.