A ética e moral muitas vezes são deixadas de lado quando se trata de alcançar objetivos pessoais e de grupo. Isso acaba de acontecer no Congresso da República do Peru onde “elegeram” um Conselho de Administração que, graças a um Executivo submisso, será quem realmente governará o país até o final de 2024.
Após intensas negociações, foi constituída uma Mesa Diretora do Congresso baseada nos interesses dos “negociadores” do segmento mais tortuoso do fujimorismo, que conformaram uma aliança de ocasião com os partidos Peru Livre, Aliança para o Progresso (APP), Avança País, Somos Peru e Unidade na Mesa.
O caso mais surpreendente é do Peru Livre, já que os demais apenas seguem honrando seu compromisso de serem peões do fujimorismo.
Embora a Presidência da Mesa tenha ficado com Alejandro Soto, do APP, isso não significa qualquer reconhecimento de méritos pessoais, mas sim da sua utilidade na estratégia fujimorista de chegar o quanto antes ao governo com um representante próprio – e não através de um intermediário, como tem agido a presidente Dina Boluarte. Portanto, o novo chefe do Legislativo é uma peça absolutamente dispensável no jogo político que acaba de começar.
Metamorfose e repugnância
Enquanto o povo peruano luta para resgatar a democracia e os direitos dos cidadãos nas ruas e praças, o Congresso tornou-se uma espécie de liquidificador ideológico, triturando e misturador das poucas convicções, partidos e lideranças políticas que restaram em um edifício que exala pestilência.
Simulando uma espécie de democracia parlamentar, o Congresso elegeu uma Mesa Diretora que deixa claro a hegemonia dos grupos, à esquerda ou à direita, que promovem a corrupção, traição e vingança política como principais argumentos “ideológicos”.
Com isso, já se pode dizer que os rompantes direitistas do Peru Livre transformaram em cinzas qualquer vestígio de progressismo mantido então pela legenda, que tinha 37 deputados no Congresso que assumiram logo após as eleições de 2021, e agora tornou-se uma minúscula bancada de 11 deputados a serviço do fujimorismo.
A implosão do Peru Livre, marcada por rupturas, renúncias de seus principais militantes e a embriaguez de poder de quem acreditou que o ex-presidente Pedro Castillo (2021-2022) seria um militante disciplinado, assim como seus flertes com a direita e com extrema direita em algumas ocasiões, foram sinais inconfundíveis de uma metamorfose política que Franz Kafka descreveria apreciando cada detalhe.
Congresso do Peru
Eleição da Mesa Diretora do Congresso peruano terminou com aliança entre partido de esquerda e o fujimorismo
Nenhuma justificativa razoável é capaz de explicar esse resultado. Não importou o fato de que seus novos aliados do partido, ligados direta ou indiretamente ao ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000) e representantes de diferentes setores da direita, são os mesmos que tentaram invalidar a vitória eleitoral de Castillo.
Como diria o líder do Peru Livre, Vladimir Cerrón, a “democracia e a esquerda (talvez se refira à sua esquerda particular) têm que aprender a governar”. Dessa forma, seu partido pode, um dia, apoiar a marcha contra Boluarte e, no dia seguinte, defendê-la a partir do seu espaço na Mesa Diretora do Congresso.
Diante dos fatos, é possível verificar que o “caminho histórico” da legenda a levou à “cúpula” da Mesa Diretora de um Congresso absolutamente desacreditado, com 90% de desaprovação segundo as pesquisas, e tratado pela cidadania como “corrupto” e “ilegítimo”.
A aliança fuji-cerronista não é apenas o resultado daquele adágio onde “os extremos se juntam”. É, sobretudo, o resultado de um longo processo toma lá dá cá que começou no mesmo dia em que os novos deputados foram empossados. Os erros e acertos dos dois lados fluíram em velocidade recorde, mas eram administrados pelos fujimoristas.
Danos à esquerda
A reviravolta ideológica do Peru Livre está causando graves lesões na esquerda peruana, mas não podemos esquecer que outras figuras desse setor que também causaram danos, os quais o país continua tentando reparar.
Será difícil que aqueles que devem ser responsabilizados por atuações coletivas e individuais tão condenáveis no passado possam validar as críticas à conduta condenável de Cerrón e do Peru Livre neste momento.
Isso inclui partidos que acabaram aceitando o papel de “aliados progressistas” dos governos de Ollanta Humala (2011-2016), Alejandro Toledo (2000-2000), Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018), Francisco Sagasti (2020-2021) e Pedro Castillo (2021-2022).
Envernizar a essência direitista desses governos como “esquerda” tem causado grandes prejuízos à esquerda, a ponto de perder seu status de reserva moral no cenário político. Uma boa autocrítica, prática e não demagógica, poderia melhorar a posição política e moral dos que sinceramente se interessam por mudanças sem esperar necessariamente por um cargo público.
Ver Cerrón fazendo uso venal do seu “poder” causa tanta vergonha quanto a produzida por comportamentos dos que visam apenas ser funcionários bem pagos, não importa se quem está no poder represente o “mal menor”, o que, como já se viu, combina muito bem com “a esquerda que a direita gosta”.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Victor Farinelli.