Cena 1. No início de abril, James Murphy – o homem conhecido pela alcunha pop de LCD Soundsystem – fez dois shows secretos em Nova York, para apresentar seu terceiro álbum, This Is Happening. De joelhos, segundo a revista britânica NME (New Musical Express), ele implorou aos presentes que não disseminassem o disco pela internet antes do lançamento oficial, marcado para 17 de maio.
“Se você conseguiu uma cópia e está com vontade de compartilhá-la com o resto do mundo, por favor, não faça isso”, discursou Murphy, segundo a NME. “Gastamos dois anos fazendo esse disco e queremos lançá-lo quando quisermos lançá-lo. Não me importo com o dinheiro – depois que sair, pode dá-lo de graça para quem quiser, mas até lá guarde ele só para você”.
Cena 2. Não adiantou. This Is Happening correu mundo antes de chegar às lojas – talvez até mesmo porque apenas uma parcela ínfima dos fãs de um dos mais inventivos artistas pop deste início do século XXI estava presente para testemunhar seu apelo ajoelhado. Milhões de admiradores nos mais variados países ouviram o disco e, nele, a faixa 6, You Wanted a Hit, que durante nove monótonos e arrastados minutos ironiza a busca incessante da indústria fonográfica pela galinha dos ovos de ouro, pela pepita pop perfeita que irá incendiar todas as pistas, rádios, TVs e sites.
Ali, Murphy brinca de não entregar um hit a seus fãs (entre eles executivos e trabalhadores da indústria fonográfica que certamente constituíram boa parte da plateia seleta do início de abril). A faixa é mais indigesta e menos amigável que a deliciosa Dance Yrself Clean, que abre o CD também em nove minutos, despejando em ouvintes piratas e não-piratas a já bem conhecida fusão pop-rock-eletrônica do LCD, de Kraftwerk a Joy Division, de Brian Eno a Devo, de David Bowie a Elton John. Pode não ser amigável, mas You Wanted a Hit revela a forte presença de espírito de um artista geralmente suspenso em pendores melancólicos, como atestam os, er…, hits deprimidos (apesar de dançantes) dos discos LCD Soundsystem, de 2005, e Sound of Silver, de 2007.
Cena 3. O primeiro candidato a hit-ovo-de-ouro de This Is Happening se chama Drunk Girls. Circula livremente como videoclipe no YouTube, tanto para os fãs que compram discos quanto para os que não compram. A letra discorre displicentemente sobre não muita coisa: meninas bêbadas, garotos bêbados, sexo casual (nem tão garoto assim, Murphy tem 40 anos e é cofundador do selo DFA, que lança os discos do LCD Soundsystem, sob distribuição mundial pela EMI).
Clipe de Drunk Girls, do novo álbum do LCD Soundsystem
As cenas do vídeo, no entanto, contam outra história, mais parecida com You Wanted a Hit e com a súplica de abril que com a letra cantada. Num cenário semidesmontado, estão visíveis e escancaradas a carcaça mambembe e todas as trucagens básicas de qualquer videoclipe. Um cantor pop e mais dois vocalistas interpretam a música rodeados por seres caracterizados como algo que poderíamos chamar de ursinhos carinhosos, donos de largos sorrisos desenhados em túnicas brancas de fantasminhas camaradas.
Nem tão carinhosos assim, os ursinhos e cãezinhos vagam pelo semicenário, empenhados em importunar os cantores: cutucam, dão empurrões, despem, derrubam, disparam sirenes, tacam ovos crus, esculacham o que resta de cenário. A certa altura, põem vestido psicodélico, peruca loura, batom vermelho e maquiagem borrada em Murphy, promovendo-o de pop star a palhaço em pleno picadeiro. De que diabos está falando esse clipe?
Pequenos monstros
Não está falando de nada além de entretenimento e ocupação de espaço pop vazio, dirá alguém. Mas o cenário devassado e semidestruído de Drunk Girls lembra demais a indústria fonográfica de que Murphy é, a um tempo empregado, e patrão. E os gasparzinhos carinhosos são a cara dos fãs bovinos que costumavam amar seus ídolos como se não houvesse amanhã, mas ultimamente deram de baixar discos piratas, menosprezar o poderio da indústria, dizer a seus mestres o que pensam e disputar atenção com eles (que o digam as incontáveis paródias dos clipes de Lady Gaga jogados no YouTube pelos admiradores que ela chama de “little monsters”).
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Epílogo. Michael Jackson morreu, mas o rei do pop está nu como jamais esteve. É fato que não só a indústria hipercapitalista, mas também heróis como Murphy e toda uma estirpe de astros pop são “vítimas” de uma legião de fãs que os amam enquanto dilapidam seus patrimônios. É fato também que tantos super-homens, semi-heróis e Clark Kents de gravadoras chegaram à glória e à fortuna dando prazer para seus ursinhos carinhosos (e depredando os bolsos deles).
Um dos muitos motivos da ruína desse império é que tanto ídolos quanto fãs têm aprendido na marra a entender que, à parte o país das maravilhas, suas relações sempre foram tirânicas. Não é de hoje que há um pirata de tapa-olho e perna-de-pau atrás de todo pop star, nem são só os gasparzinhos de agora que estão sempre à espreita, doidos para cravar dentes e garras na carne doce daqueles que eles amam com tanto fervor e devoção.
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.
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