E o dia dos namorados que se aproxima trouxe a música brega para essa coluna. Que nos perdoe o leitor forjado na Bossa Nova, no Cinema Novo e na arquitetura concretista, mas o brega, ahh, esse é fundamental! Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, brega é um termo usado para designar um estilo banal, direto e sentimental. O sinônimo de origem italiana – cafona – significa indivíduo humilde ou tolo. A expressão dá a medida do preconceito de que o gênero padece, com cantores e ouvintes sem eira nem beira, mas com o coração apaixonado. Não foi o primeiro e nem o último estilo a sofrer com as classificações de música “do povão” ou “da elite”.
Complexo de vira-lata, ou vira-latismo, é uma expressão criada pelo escritor Nelson Rodrigues para a derrota da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã, que foi incorporada por muitos analistas de política internacional. Impossível não pensar em Waldick Soriano e no clássico do cancioneiro brasileiro “Eu não sou cachorro não” ao assistir a Quarta Frota dos EUA desfilando pelo mar carioca.
Manuel Domingos aponta que o militar moderno em um “país arcaico”, como é o caso do Brasil, tende a ser mais narcísico que o dos países desenvolvidos. Propenso a desejar uma sociedade digna de si, torna-se fator permanente de instabilidade política. O vira-latismo identifica que o brasileiro é um narciso às avessas, ao se colocar, voluntariamente, como inferior diante do resto do mundo. Essa inferioridade era localizada na miscigenação com o negro, na ignorância, ou mesmo na geografia tropical, que predisporia os povos à luxúria. Nas palavras de Monteiro Lobato (1903), o brasileiro era um tipo imprestável, um Jeca Tatu.
Um efeito da baixa estima é deslumbrar-se perante a cultura estrangeira, inicialmente portuguesa, depois francesa, e por fim estadunidense. As admirações na cultura de massa são as mesmas que se repetem na área militar. O porta-aviões ilustre que, por alguns minutos, interrompeu o fluxo de embarcações na Baía da Guanabara há algumas semanas, faz parte da Quarta Frota dos EUA, Componente Naval do Comando Sul estadunidense, em operação no Mar do Caribe e oceanos Atlântico e Pacífico que circundam a América do Sul e Central. Fundada durante a 2ª Guerra Mundial, comandou, em 1942, a participação da Marinha brasileira na guerra, e teve como principal base internacional a cidade de Natal, sendo desativada em 1947.
Em 2008, a Quarta Frota foi reativada pelos EUA. Ao não informar os latino-americanos dessa intenção, criou-se um incômodo diplomático que originou manifestações do Brasil, Argentina, Cuba e Venezuela. Poucos anos depois, repetindo o feito do Exército, que convidou militares estadunidenses para treinarem na Amazônia brasileira, a Marinha recebeu orgulhosa o porta-aviões George Washington na Amazônia Azul para o exercício Southern Seas 2024. O fabuloso “brinquedo” já esteve no Brasil em 2015, e tem o tamanho de 3 campos de futebol, a altura de 77 andares, propulsão nuclear e carrega um “caça invisível” (caça com uma tecnologia que impede e localização por alguns tipos de radar) no convés.
A justificativa oficial agora são os 200 anos de relações diplomáticas Brasil-EUA, mas as intenções estadunidenses, nada encobertas, são deixar claro para a China quem manda nesse pedaço do mundo. Por parte dos EUA, manobra estratégica legítima. O que incomoda é a posição brasileira, que, deslumbrada com a oportunidade de se saciar com o meio de força alheio, e iludida com a ideia de que tamanho é documento, trabalha para melhorar a interoperabilidade com o Grande Irmão do Norte.
Não se trata de propor o fim das relações militares Brasil-EUA, mas a palavra interoperabilidade esconde várias armadilhas. Interoperabilidade é o aumento da capacidade para a atuação de forma conjunta, orientados por um mesmo objetivo, e compartilhando uma mesma doutrina. Remete a uma noção de horizontalidade inexistente, mas não em função da superioridade de meios que o país possui, pois é possível cooperar com quem tem mais ou menos meios de poder.
A música brasileira costuma ser dividida em duas: a tradicional (ou regional) e a moderna, vanguardista em cada tempo histórico, como a Bossa Nova. O brega navega entre as duas vertentes, reflexo de elites nacionais, entre elas as elites militares, cuja identidade oscila entre a tradição e a modernidade. Confundindo superioridade de meios com superioridade estratégica, pode-se imaginar um ou outro Almirante em uma mesa de bar, reclamando (com whisky, por favor), que o Grande amor incestuoso resolveu se casar com a vizinha Argentina, aproveitando-se de Milei. Nem uma carta enviou para avisar, e deixou em pedaços o coração de parte da Armada. A expressão atual, “que inveja da autoestima do homem branco”, vale para as relações interpessoais e para as tratativas entre as nações. Não à toa o chanceler Celso Amorim denominou a política externa por ele comandada de altiva, e não apenas ativa.
A interoperabilidade com os EUA é impossível, pois trata-se de uma país imperialista, que projeta poder bélico ao redor do mundo e, semeando a guerra, colhe destruição e ódio por onde passa. Por isso, as ameaças que pairam sobre o imaginário da doutrina de segurança nacional estadunidense são inequivocamente diferentes das brasileiras, um país que adota uma estratégia defensiva, em que pese a retirada do conceito de dissuasão dos novos documentos de defesa nacionais. As relações e interoperabilidade com os EUA são, portanto, verticais, de subordinação, puro vira-latismo.
Os treinamentos conjuntos são oportunidades para o fortalecimento de consensos estratégicos, táticos e operacionais, em suma, de fortalecimento da hegemonia regional. Também receberão os visitantes ilustres a Argentina, o Chile, Colômbia, Equador, Peru e Uruguai. É a décima missão do tipo na região desde 2007, com uma novidade: oficiais de onze nações terão aulas e conduzirão as operações desde o interior do porta-aviões: Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Holanda, Paraguai, Peru, Trinidad e Tobago e Reino Unido. As ações executadas pela Quarta Frota são as de suporte para a manutenção da paz, assistência humanitária, alívio de desastres, contra as drogas e tradicionais.
O exercício é comandado pela general do Exército dos EUA Laura Richardson, que participou também de uma mesa sobre a importância das mulheres em missões de defesa e segurança, pensando a diversidade na segurança global. Uma fofa: inclusiva, pacifista, e promotora da estabilidade (sic). Waldick Soriano já alertava que a pior coisa do mundo é amar sendo enganado. A comandante vem coordenando a implantação da Doutrina da Dissuasão Integrada, imersa em uma concepção de guerra de amplo espectro. Sem renunciar à guerra contra o narcotráfico e o terrorismo, essa doutrina amplia a esfera de ameaças, juntando ao “crime organizado transnacional”, nações consideradas hostis como a China, Rússia e Irã (parceiros do Brasil nos BRICS). Forças policiais, militares, sistemas penais e serviços de inteligência são vistos de forma combinada.
Na Dissuasão Integrada para a América Latina, se sobressai: 1) o retorno da região à estratégia de confrontação global dos EUA; 2) a busca por aliados confiáveis na região, mantendo a OTAN com baixo perfil, para atuar em crises como a da Venezuela-Guiana ou na projeção para a Antártida; 3) apoio incondicional às novas direitas, e reforço da desestabilização contra Venezuela, Cuba, Nicarágua, México e Colômbia; 4) construção de acordos bilaterais de segurança, como os estabelecidos recentemente com Argentina, Equador, Paraguai, Uruguai e Peru; 5) a opção pelos incentivos de força em detrimento dos diplomáticos por parte do Departamento do Estado dos EUA.
Em que pese o crescimento das relações comerciais com a China, na área militar, há completa e absoluta adesão aos EUA, extensiva a Israel. Estudo do IPEA revelou que metade dos militares lotados na JID (Junta Interamericana de Defesa), são brasileiros. Existem divergências sobre como estabelecer relações, mas não sobre com quem estabelecer relações político-militares. Nas Forças mais tecnológicas, como Marinha e Aeronáutica, o fetiche pelo moderno fica mais evidente, ainda que doutrinariamente seja para o emprego tradicional: o doméstico.
Bem fariam as Forças Armadas em adotar a mesma orientação que a política externa brasileira, de equidistância das duas grandes potências em disputa – China e EUA –, enquanto trabalha pela multipolaridade. Com o perigo de uma Terceira Grande Guerra rondando o continente, mesmo essa posição tende a ser difícil de sustentar. Um alinhamento forte aos EUA é ruim em momentos de tranquilidade, mas é ainda pior em momentos de aberta concorrência pela hegemonia global. Se a caserna rifar pragmaticamente seu coração, fazendo leilão e vendendo a quem der mais, quem será que leva?
Da parte dessa autora, desejo que um dia povo em armas e sem armas se encontrem num projeto de emancipação nacional, em um amor escrito nas estrelas. Por enquanto, nesse dia dos namorados, nem mesmo existe um flerte, só muitos corações partidos que a música brega consola.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência política pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.