Querido e ferido camarada Hugo: meu último artigo de 2012 é dedicado a você. Certamente não o poderá ler agora, mas sei que o que direi são coisas nas quais deve estar pensando, pois são coisas que você muitas vezes gritou aos quatro ventos. Começamos pelo velho preceito: por mais ateu e descrente que alguém seja, às vezes surge a tentação de abandonar essa convicção e pedir uma bênção (nossa especial forma, bastante enraizada em nossa alma meio espanhola meio quilombola, de agradecer e mostrar respeito), mesmo você não sendo nosso pai (ou mãe), mesmo não sendo o “protetor do povo”. Você é filho deste povo. É filho desta história ora violenta ora gloriosa. Portanto, se não o temos como pai, podemos tê-lo como nosso irmão.
***
Essa ideia vem galopando há algum tempo e cresceu junto com as nossas conciências, e creio que foi Roland Denis quem a resumiu da forma como eu sintetizei neste título. Junto com essa reflexão tão simples e óbvia, e ao mesmo tempo tão profunda e irrefutável, gostaria de incluir uma série de detalhes.
Por exemplo, que você se diferencia de tantos outros “protetores” (caudilhos, chefes, presidentes, ídolos, dirigentes) de nosso longo processo, que chegaram a ser nossos condutores, mas não eram como nós, não procediam da nossa classe social. Boves era asturiano, Bolívar também era mais espanhol que americano, além de ser um aristocrata; Páez não podia esconder sua figura loira e bem alimentada, Zamora era rico e dono de escravos; e entre os demais manda-chuvas que tivemos entre os séculos 19 e 20 aqueles provenientes de nossas entranhas não duvidaram em trair sua origem, e jamais chegaram ao pedestal que o carinho das multidões reserva aos seus filhos legítimos transformados em condutores.
***
Por que digo isso, precisamente nesta hora de compartilhar contigo essa dor, que também é nossa? Nem mais nem menos, meu chapa, é só para aproveitar e contar algumas fofocas. Para te mostrar uma preocupação e um fastídio, mas também uma esperança. Esperança: essa coisa que aquele que já foi jogador sabe que se põe sobre a mesa quando acha que não há mais chances de ganhar. Nesses casos que você gosta de usar a expressão “jugarse a rosalinda” (equivalente a “jogar todas as fichas”). Ou como uma vez você desafiou, dizendo: “ou caço a capivara ou o arpão virá contra mim”. Pois, nesse clima estamos andando: tendo duas ou três cordas frágeis ou torcidas em nosso projeto, mas apostando que vão se recuperar, ou arrebentar de vez, a jogada ainda é a que você propõe desde 1998 (ou a de 2006-2007, ainda mais emocionante).
***
Primeira fofoca: alguns de nós ainda acreditam que você é como nosso pai, e que nesse caso devemos deixar que você conduza, e decida, e que avalie tudo, e arrisque tudo, enquanto nós nos dedicamos a aplaudir e obedecer. Ah, e a pagar impostos: nós pagamos e seus funcionários fazem a Revolução.
Algo tão ou mais grave: também há entre nós quem acha que você deve ser presidente para sempre, porque sem você a Revolução acaba; gente que acredita que dizer Revolução é o mesmo que dizer Governo de Chávez e portanto anda aterrorizada porque acha que se Chávez não governa a Revolución já era. Gente que não entendeu nunca o seu projeto nem a proposta “Democracia Participativa e Protagônica”, e prefere seguir dizendo que isto que vivemos ainda não é uma Revolução porque ainda temos burgueses e porque a gente caminha pelas ruas e encontra uma filial do McDonald´s. Companheiros que não entenderam (e já não entenderão, agora é tarde) que o teu chamado, em 1997, não era uma mera oferta eleitoral e sim um convite a agir.
NULL
NULL
Traduzindo: gente que não compreendeu que naquele 1997 você não prometeu fazer uma Revolução, e sim nos convidou a fazê-la juntos. Amigos queridos que reclamam: “a Revolução fracassou porque temos ruas com buracos, e criminalidade, a escola está em pedaços, o hospital não funciona, temos apagões”, e a esses temos que dizer: “pois bem, meu chapa, mãos à obra e põe o teu pessoal para trabalhar nos comitês de Segurança, Obras, Saúde e Controladoria”. Mas não: parece que não superamos ainda a etapa infantil, essa na qual o Governo deve resolver esses e outros problemas enquanto nós colocamos nossa cabeça no travesseiro sem grilos.
Aceitamos o clamor por “gerentes eficientes”, por soluções do Estado e das corporações, e não percebemos que a tua proposta consiste em evoluir até prescindir das corporações e do Estado e construir governos comunitários em cada bairro, em cada vizinhança, quadra e edifício.
Alguns de nós, e muitos antichavistas também, não puderam entender algo essencial: que o miolo do assunto, o núcleo de todo esse escarcéu por te manter no Palácio Miraflores, não consiste no fato de ter alguém que nos governe senão que (por que, diabos, é tão difícil de entender) PARA PERMITIR QUE NÓS NOS GOVERNEMOS.
Mas não, que se dane tudo: preferimos seguir acreditando a Revolução se faz em Miraflores e não na rua, no local de trabalho, no lugar onde estudamos e brigamos, onde fazemos as nossas vidas.
Muitos de nós ainda acreditam que a ideia de recuperar governos estaduais e prefeituras é fortalecer essas instâncias de governo e de poder. É tarde para que entendam (insisto): que a ideia de ter a leais chavistas nesses cargos não consiste em amarrá-los aos mesmos e sim em fortalecer os espaços que substituirão essas instâncias a longo prazo: as comunas.
Parecemos tão espertos, e não sacamos que para seguir dando passos revolucionários é preciso: 1) ganhar ou conservar espaços de poder, e 2) evitar que os ricos e seus aliados instrumentais tenham acesso a essas instâncias. Porém, isso não significa, de forma alguma, que o projeto chavista consiste em ter todos os cargos executivos e blindá-los para torná-los eternamente chavistas. Nos custou muito trabalho, camarada irmão, compreender que para construir uma sociedade é preciso demolir a que estava antes, e que isso é um trabalho lento e de gerações, mas que é preciso visualizar já: como avançaremos ao Estado Comunal se antes não destruimos os pilares do estado burguês?
***
Suspeita: temos companheiros que acreditam que nada pode ser revolucionário se não ocorre a nível nacional. Há pouco tempo, eu mostrei a alguns senhores intelectuais marxistas um exemplo real e atual de construção de uma comuna, na comunidade rural de El Zancudo, no estado de Apure (tracciondesangre.blogspot.com/2012/09/historia-de-una-gente-una-laguna-y-unas.html) mas eles o desprezaram: disseram ser um caso microscópico que não acabará com o capitalismo; isso porque desdenham o impulso humano de difusão, reprodução e aperfeiçoamento de experiências. Creem que nada pode ser melhorado, que tudo nasce e se mumifica para sempre. Chamaram o caso de experiência hippie. É normal: os intelectuais burgueses, incluídos os que cobram por ler e repetir livros de Karl Marx, jamais saberão a diferença entre um hippie e um camponês. Desconhecem o país e o povo que pretendem governar e submeter a uma espécie de “experimento científico”, contido em manuais acadêmicos e não na realidade.
***
Como te disse, entre as coisas que estão se tornando difíceis, companheiro, está isso de nos acostumarmos com a ideia de que algum dia (em 2013, 2068, 2115 ou 2342) você já não será Presidente da República e ainda assim a Revolução deve continuar. E mais: algum dia o antichavismo pro ianque voltará a retomar o controle desse Estado burguês que tardamos em demolir (uma das marcas da nossa revolução é a lentidão), e ainda assim os revolucionários que sobrevivam quando isso acontecer devem manter viva a chama da Revolução Venezuelana. Porque a Revolução não é uma gestão de Governo: a Revolução é a luta contra os mecanismos, estruturas, indivíduos, condutas e fatores que querem manter vivo o capitalismo.
Hoje é relativamente cômodo fazer a revolução ou sentir que caminhamos nessa direção; mas chegará o momento em que fazer a revolução será tão trágico como foi antes aqui e em outros tantos lugares do planeta: uma missão dolorosa, criminalizada, perseguida, condenada; por fazer a Revolução, seremos buscados pelos órgãos de “segurança”, seremos invadidos, presos, desaparecidos. Para um companheiro surtudo ou distraído o suficiente, a noção de fazer a Revolução pode significar hoje algo cômodo, bem visto e às vezes remunerado. Chegará o momento em que essa noção terá cheiro de sangue e tragédia. Mas teremos que defendê-la ainda assim. Já não teremos mais a VTV nem os meios de comunicação estatais difundindo nossas pequenas façanhas comunitárias, e sim atacando-as como perigosos germes do comunismo e do terrorismo; já não teremos funcionários aliados, e em vez disso, inimigos querendo nos esmagar. Imaginemos a multiplicação de meios como Globovisión, ou sua linha editorial reproduzida por canais como VTV, Telesur e Vive: contra isso deveremos lutar. Não sei como, mas teremos que fazê-lo.
***
Neste momento de rumores e incertezas, eu mantenho as duas ou três reflexões que venho fazendo desde 2006, porque você não tem que se sacrificar nem seguir alimentando a ideia de que será nosso presidente por toda a eternidade. Por isso, nos apresentou a possibilidade de que Nicolás Maduro seja seu sucesso na Presidência; creio que como medida para evitar que algum filhote da ultra-direita pró-empresarial se aproveite da situação, está bem. O tempo dirá se Nicolás passará pelos exames de força, habilidade e apego ao projeto, mas por ora não vejo problema em difundir o apelo para apoiar o mandato do camarada, para evitar que os Estados Unidos regressem por aquilo que consideram deles.
***
Estas são as manchetes: você está na luta, em tua luta, na que joga a sua própria vida. Enfrente-a, e enquanto isso, nós nos ocupamos dos bichinhos que andam zumbando por aqui esses dias. Nesse dramático anúncio em que você deu apoio ao Nicolás, demonstrou coragem e sentido comum suficientes para plantear até mesmo, compadre, a possibilidade de dar descanso ao corpo, se ele pedir descanso, e se já não tem nenhuma obrigação conosco nem com ninguém. Prefiro você vivo, e com o repouso que anseia, como a brisinha caribenha golpeando o vespeiro, e não se sacrificando por nós, que já somos bem grandinhos. E a direita que virá para te fazer pagar por tua lealdade ao povo? Depois eu te conto a surpresa que nós temos para eles.
Enquanto isso, não siga fazendo o papel de nosso pai, pois você não é isso: você é filho deste povo, e essa situação contém uma bela notícia: assim como te pariu, este povo também pariu e continuará parindo candangos e candangas, mais furiosos e furiosas que você. Pode ser que tardemos décadas ou séculos antes de ver outro desses filhos formidáveis na Presidência da República. Mas enquanto a História nos leva de novo a esse momento luminoso, seus irmãos estarão frente a frente, uns com os outros, reconhecendo nossa identidade nessa irmandade da luta dos pobres, e então descobriremos que você foi multiplicado por muitos; com a auto-estima alta, limpa e purificada por esses anos de rebelião, encararemos esse espelho venezuelanos e te veremos, Chávez, reproduzido no molequinho rebelde da escola, na velhinha que vai ao mercado e volta para casa com as varizes arrebentadas; Chávez estará no jogador de truco, que em cada frase agrega sua genialidade e algumas gargalhadas; Chávez nos cantores e rappers que proliferam tanto como suas canções, líricas e versos; Chávez na rebelião do taxista e do motorizado com raiva do caos e do anúncio de novas tempestades; Chávez na tristeza da puta e nos pequenos sucessos da empregada doméstica; Chávez no marceneiro e no que semeia a terra; Chávez nos pescadores, artesãos e curandeiros; Chávez na música, nos vagabundos e nos nômades; Chávez na pobreza que gerará outros Chávez; Chávez nas religiões brancas e nas da resistência; Chávez sentado nas ancas de uma anta e abraçado à cintura de María Lionza, Chávez no malandro e no que estuda porque acredita que nos livros está a salvação contra a ignorância; Chávez em nossas equivocações, contradições e acertos; Chávez em todos nós, os que nunca mais abandonaremos as ruas.
*Texto originalmente publicado no blog Tracción de Sangre