O triunfo de Sebastián Piñera nas eleições chilenas marca o ocaso do projeto político mais bem-sucedido do último ciclo de transições à democracia na América Latina. No primeiro turno, pela primeira vez desde o fim do pinochetismo, a Concertação havia sido derrotada pela direita. Agora, o megaempresário, dono da companhia aérea LAN Chile e ex-presidente do Colo Colo, tornou-se presidente de seu país, inaugurando uma nova era na história política chilena e alimentando a possibilidade de que a aliança entre o socialismo e a democracia-cristã, cuja origem remonta à campanha pelo “Não” a Pinochet no plebiscito de 1988, finalmente se rompa, com o consequente risco de que a ala mais moderada da coalizão explore uma aproximação com os setores mais democráticos da direita (liderados justamente por Piñera). E, como pano de fundo, o esgotamento de um projeto político de duas décadas que deixa triunfos inegáveis, mas também algumas sombras.
No balanço de sucessos da Concertação, o maior é, sem dúvida, econômico. Como se sabe, os governos concertacionistas deram continuidade às linhas mestras do modelo imposto a sangue e fogo por Pinochet, que de qualquer modo admite algumas nuanças: apesar de suas raízes inegavelmente ortodoxas, certas característica próprias marcam uma diferença crucial entre o esquema chileno e o neoliberalismo nu e cru. Em princípio, nem sequer Pinochet se atreveu a privatizar a Codelco, a estatal do cobre, nem a desfazer a reforma agrária implementada pela democracia-cristã nos anos 1960, que acabou com os latifúndios e foi fundamental para o posterior salto do agronegócio. O Estado, além disso, cumpriu um papel importante, primeiro garantindo um tipo de câmbio competitivo e depois estabelecendo limites ao ingresso de capitais.
Mas o ponto central é que nem Patricio Aylwin, nem Eduardo Frei, nem Ricardo Lagos e nem Michelle Bachelet puseram em risco os eixos principais do projeto pinochetista, baseado em um gerenciamento macroeconômico muito rigoroso, sem déficit fiscal, com uma carga tributária baixíssima (16,5% do PIB) e uma estrutura de impostos regressiva (as taxas sobre o consumo afetam inclusive os produtos mais básicos, como o leite e o pão, enquanto o imposto sobre a renda é muito reduzido), ao lado de leis trabalhistas ultraflexíveis, com um dos índices de sindicalização mais baixos da região (menos de 10%) e serviços públicos caríssimos.
Tudo isso no marco de uma importante abertura ao mundo (o Chile assinou tratados de livre comércio com 20 países, dos Estados Unidos e China à Nova Zelândia e México) que funciona como pilar de um modelo ultra-exportador e pró-empresarial que transformou algumas companhias chilenas, como LAN e Falabella, em gigantes translatinas, e cujos valores de progresso individual e egoísmo capitalista permearam culturalmente a sociedade chilena (um dos legados mais duradouros e menos comentados da ditadura de Pinochet).
Vejamos alguns números. Nos vinte anos de governos concertacionistas, o salário real cresceu 3% ao ano, o desemprego permaneceu sempre abaixo de 10%, a inflação se manteve controlada e a dívida externa diminuiu até ficar abaixo de 50% do PIB. O PIB chileno cresceu em média 5,5% ao ano, embora o ritmo tenha se desacelerado nos últimos tempos, e inclusive se calcule – os números oficiais ainda não foram divulgados – uma queda entre 2% e 3% em 2009, mas com uma possível recuperação em 2010. Ao longo dos últimos 15 anos, o Chile conseguiu driblar as crises mexicana, asiática, russa, argentina e mundial sem explosões nem colapsos, marcando uma diferença crucial em relação aos demais países da América Latina, que de tantos em tantos anos sofrem uma hiperinflação, uma recessão profunda ou um calote, entre eles a Argentina, mas também o Brasil e o Uruguai (e obviamente todos os países andinos). Talvez esta continuidade seja o principal acerto do modelo chileno.
Avanços sociais
Do ponto de vista social, os avanços foram igualmente notáveis. Como resultado de uma série de políticas sociais focalizadas, bem implementadas e sustentadas ao longo do tempo, a pobreza diminuiu significativamente. Em 1989, o último ano da ditadura de Pinochet, a pobreza havia chegado a 42%. Hoje está em 13,2%, segundo dados da Cepal, a porcentagem mais baixa da América Latina, com um índice de indigência de 3,2%, menor que o de um país em desenvolvimento. Outros estudos coincidem com este diagnóstico: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) – um índice mais abrangente, que combina níveis de crescimento e desigualdade, baixa renda, saúde e educação – situa o Chile no primeiro lugar na América Latina (44º no mundo), superando pela primeira vez a Argentina, 49ª no mundo (o terceiro na classificação latino-americana é o Uruguai). E um último e espantoso dado: existem hoje no Chile bolsões de pobreza rural, sobretudo nas regiões do norte, e alguns assentamentos precários na Grande Santiago, mas praticamente não há mais favelas.
Estes avanços, que deveriam inspirar uma reflexão por parte de quem acusa os governos chilenos de encarnar um simples modelo neoliberal, não bastam para ocultar as questões pendentes: as políticas sociais, embora tenham servido para combater a pobreza e a indigência, mostraram-se incapazes de enfrentar outros problemas, mais complexos, como a precariedade do trabalho, em geral mal remunerado e superexplorado, ou as crescentes demandas de uma classe média baixa que não consegue se incorporar a um boom de consumo que alcançou níveis obscenos. O reflexo estatístico dessas carências é a desigualdade, área em que os avanços foram menores ou mesmo inexistentes. No Chile, o abismo entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população é de 14 vezes. O Gini, o mais popular indicador de desigualdade, é de 0,56, o que posiciona o Chile como um dos países mais desiguais da região, ao lado de Brasil e Paraguai.
Nos últimos anos, especialmente a partir do governo de Lagos, iniciaram-se algumas reformas destinadas a melhorar essas questões: os serviços de saúde foram bastante ampliados, a infra-estrutura educacional foi reforçada e, já durante a gestão de Bachelet, foi aprovada uma reforma do sistema previdenciário que inclui uma “aposentadoria solidária” para quem não contribuiu tempo suficiente (embora a reforma não tenha tocado no âmago do sistema de aposentadoria, baseado na contribuição individual, por meio da criação, por exemplo, de um sistema misto, sem falar na possibilidade de um sistema totalmente estatal, como o que funciona na Argentina e no Brasil).
Valor agregado
Chegamos assim ao que muitos analistas consideram o núcleo do problema. O formidável impulso exportador, explicação derradeira de todos esses progressos, baseou-se, sobretudo, em produtos primários ou elaborações a partir deles. Quando o entrevistei para meu livro La Nueva Izquierda, Ricardo Lagos disse que a crítica é correta, mas frequentemente exagerada. “O argumento faz algum sentido, mas às vezes se transforma em uma caricatura. Eu lhe pergunto: se exporto amêndoas, mas guardadas em uma bolsa hermética, que por sua vez é acondicionada em uma caixa de papelão especial, desenhada especialmente para um hotel cinco estrelas da Europa, com o nome e o logotipo do hotel, que precisa chegar em determinado momento e em determinado volume, o que estou exportando? Amêndoas? Que valor têm as amêndoas neste produto? Outro exemplo: tenho um amigo que exportava ostras congeladas, até perceber que era mais rentável exportá-las resfriadas. Isto significa que, desde o momento em que as ostras são retiradas do Pacífico até a hora em que são servidas em um restaurante em Paris, Nova York ou Berlim, não podem se passar mais de 30 horas. O que meu amigo exporta? Ostras? Ou exporta know-how, tempo, eficiência, segurança?”
Para além da defesa de Lagos, os números são eloquentes: 75% das exportações chilenas são representadas por produtos primários ou bens elaborados com base neles. Do total, uma porcentagem importante, hoje perto de 38%, continua sendo o cobre. O resultado é um quadro que dificulta a extensão dos benefícios do crescimento a todos os setores sociais e expõe o país aos ciclos externos (o preço do cobre é quase tão importante para o Chile quanto o do petróleo para a Venezuela, ou o do gás para a Bolívia), no marco de uma economia que inclui vários enclaves ultraprodutivos (cobre, mas também madeira, frutas ou salmão), um setor de serviços muito extenso e eficiente (embora excludente) e um setor industrial reduzido, com um mercado interno pequeno e não muito dinâmico.
Em seus 20 anos de gestão, a Concertação avançou também em outras áreas. Depois de muitas idas e vindas, conseguiu limpar os aspectos mais autoritários da Constituição criada pela ditadura, em um movimento de despinochetização institucional que devolveu ao presidente o controle das Forças Armadas, democratizou a Justiça e eliminou a figura dos senadores vitalícios criados por Pinochet, além de outros avanços no plano cultural, como a eliminação do Comitê de Censura e a aprovação da lei de divórcio (o Chile foi o último país do Hemisfério Ocidental, além de Malta, a aceitar o divórcio). Ao mesmo tempo, persistem déficits graves, entre os quais se destaca um sistema eleitoral binominal criado para favorecer a direita, que exclui sistematicamente as minorias da representação.
No entanto, além deste equilibrado balanço de conquistas e dívidas, não resta dúvida de que o coração do problema chileno, o que explica o triunfo de Piñera e o início de uma nova era, é econômico-social. Em particular, a relação entre desigualdade e política econômica: na verdade, a persistente desigualdade chilena não é resultado de um desvio do modelo passível de correção por meio de políticas específicas, e sim parte essencial de um projeto que a Concertação não quis, não soube ou não pôde modificar.
José Natanson é jornalista argentino, cientista político e editor da revista Nueva Sociedad. Artigo originalmente publicado no Pagina 12
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