Cumprindo a promessa que havia feito há meses, Joe Biden sancionou o projeto de lei que, na prática, baniu o aplicativo TikTok dos Estados Unidos. A lei obrigava que a proprietária do aplicativo, a ByteDance, vendesse a operação para uma empresa americana, do contrário, teria de encerrar sua operação no país – e, obviamente, a ByteDance não o fará, deixando os mais de 170 milhões de usuários do aplicativo órfãos.
De um lado, o episódio mostra o grau da agressividade americana contra a China – e o TikTok pode ser apenas o começo –, mas também marca como Joe Biden está menos distante de Trump do que alguns liberais dizem publicamente – ou querem nos fazer crer. Por fim, há um terceiro debate, que é a importância estratégica das redes sociais no mundo, repetindo a contenda de Elon Musk contra o Brasil por causa do X.
Parte da disputa envolvendo o aplicativo gira em torno de Washington não controlar, realmente, o conteúdo que circula no app: primeiro, como Joe Biden, o establishment democrata em conluio com os “trumpistas”, usam de argumentos contra censura e de segurança nacional para, na verdade, controlar conteúdo; segundo, há um pânico instaurado nas elites de Washington que leva a um movimento de “fechamento de regime”.
A questão palestina, no contexto do massacre de Gaza, inclusive foi colocada por muitos dos opositores do TikTok, pois, segundo eles, a forte crítica a Israel entre os mais jovens seria derivada do que eles fazem, assistem ou compartilham do app – sem maiores evidências, mas desse hino em novilíngua o que se depreende é que Washington gostaria que o app contivesse a circulação de vídeos sobre os fatos.
A grande simetria falsa
Um dos argumentos repetidos, e plenamente falsos, é de que antes a China proibiu as redes sociais americanas. Nesse sentido, mora uma falsidade importante, uma vez que Pequim nunca criou uma lei nova para expulsar redes sociais americanas, mas cobrou que elas se adaptassem às suas leis existentes, sobretudo em contexto de atentados terroristas no país asiático – o que foi retorquido por Mark Zuckerberg no Facebook e, depois, na Meta.
Como podemos ver, a recusa americana nada teve a ver com liberdade de expressão, mas de estender sua soberania sobre a própria China – jamais ocorreria a Zuckerberg desrespeitar as leis americanas e ele sempre foi responsivo ao Congresso Americano e suas exigências. Em um momento como o atual, onde os Estados Unidos se sentem ameaçados na sua liderança, eles não se importam em fazer pior com redes sociais chinesas.
Por sinal, no caso TikTok, a lei que baniu o app está dentro da Lei de Segurança Nacional dos Estados Unidos para 2024. Isto é, inventou-se legislação nova para dar um ultimato aos chineses, porque, em último grau, o governo americano não teria jamais soberania absoluta sobre a rede social – e não é de adaptação à lei americana que estamos falando, ou de liberdade de expressão, mas de domínio.
Um ponto adicional, do qual não podemos nos esquivar, é a assimetria entre os Estados Unidos e os demais países do globo, inclusive a China. Há 30 anos, o país da América do Norte defendia a abertura do mercado e a internacionalização, pois sabia que estava em plena vantagem econômica – em tempos em que isso mudou, mudaram também as convicções de Washington, muito embora hoje estejamos falando mais de estratégia do que de economia.
Imagine se fosse o Brasil?
Suponhamos que o Brasil desse um justo ultimato ao X de Elon Musk não por descumprimento de suas leis, mas exigindo que ele vendesse a operação no Brasil a uma empresa nacional por razões de segurança nacional? Pois é. Por muito menos se fez o estardalhaço em torno da obrigação do X cumprir decisões judiciais brasileiras no Brasil. Muitas das quais ligadas a um evento político bem demarcado.
Evidentemente, isso não é uma questão sobre a soberania nacional de quem quer seja, mas de uma prática no mínimo cínica na qual os Estados Unidos colocam sua soberania nacional acima da de qualquer outro país para obter ganhos duvidosos, sob a égide de objetivos mais duvidosos ainda. Não é só garantir a reserva de mercado para seus dóceis bilionários contra empresas estrangeiras, mas de ter controle sobre o conteúdo.
O Santo Graal da jogada não é a “liberdade de expressão”, que a priori é garantida em qualquer rede, mas a chave dos algoritmos de cada rede social, o que vai produzir ou não difusão e engajamento. A prática da gestão Biden é, no mínimo, maliciosa, e curiosamente repete uma medida que Trump tentou tomar anos atrás, mas foi criticado com dureza e não conseguiu levar adiante.
Em outras palavras, esse evento diz muito sobre o valor estratégico das Big Techs e das redes sociais, mas também sobre os rumos da hegemonia americana. Em 2024, Biden aprofundou sua estratégia disciplinar sobre a globalização, jogando pesado com parceiros e adversários, em dias que também testemunharam a aprovação de bilhões de dólares em armas para Ucrânia, Israel e, também, Taiwan, único dos três lugares a não registrar, ainda, uma guerra.
Não espere coerência de Washington, nem muita diferença entre republicanos, mesmo trumpistas, e democratas – com honrosas exceções entre os libertários dos republicanos, defensores do livre mercado total e isolacionistas, e da esquerda democrata, cada vez mais isolada na qualidade de base de um presidente belicista, que está afiançando não apenas guerras pelo planeta, mas também a brutal repressão internas a protestos contra isso.
O discurso de parte do campo moderado da esquerda brasileira, de que haverá uma disputa entre o bem e o mal nas próximas eleições presidenciais americanas, sem dúvida, caiu por terra inteiramente. Não é sobre isso. Mas sobre como as duas frações da oligarquia americana discordam nas táticas para manter à força a hegemonia americana, muito embora se alinhem em momentos decisivos, uma vez que ainda concordam na estratégia.
A visita de Tony Blinken à China e a resposta dura e franca de Xi Jinping, em público, dá mostras desse esgarçamento de relações, que pode se tornar completo nos próximos anos. As consequências disso são imprevisíveis, mas certamente são muito perigosas e colocaram o Brasil na alça de mira das potências ocidentais. O governo brasileiro terá de estar preparado e resistir.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.