Anunciaram e garantiram: o Parque Ibirapuera, ponto turístico de referência da sombria cidade de São Paulo, vai mudar de nome. Na real, não vai chegar a mudar, mas apenas receber um penduricalho: Parque Ibirapuera Rita Lee (ou Parque Ibirapuera – Rita Lee). Apresentado pela vereadora petista Luna Zarattini, o projeto foi aprovado em primeira votação, neste mês de abril de 2024. Abram-se as cortinas para a controvérsia.
Como costuma acontecer com toda ou qualquer novidade abruptamente anunciada, os reativos e reacionários de todos os pontos do espectro ideológico não tardarão a gritar: “NÃO!”. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando alguém teve a ideia de criar um Ministério da Cultura para o Brasil, e todo mundo foi contra, de Carlos Drummond de Andrade a Ruy Castro. Ainda não havia para eles Gilberto Gil, e todos gritaram: “NÃO!”.
Para Rita Lee (1947-2023), provavelmente usarão argumentos de todo o espectro, desde ela ser uma descendente imperialista do General Lee (é?) até ser uma cowgirl tropicalista exterminadora de indígenas (é?), além de mamadora nas tetas da Lei Rouanet (foi?). Não importa quais os argumentos, muitos se colocarão frontalmente contra a conspurcação do nome Parque Ibirapuera pela Macunaíma ruiva que arrombou a festa e devorou a masculinidade roqueira paulista e paulistana. (Não entraremos aqui no mérito de que o Ibirapuera e o Anhangabaú e outros santuários indígenas foram privatizados, e os donos originários dos lotes de terra não estão recebendo um centavo em troca da barganha.)
Mas talvez fosse o caso de perguntar: qual o sentido de defender ou combater a criação de um Parque Ibirapuera Rita – ou melhor, mulherageando – a roqueira rebelde que foi cantada por Jorge Ben Jor (a “Rita Jeep”), avacalhada por Caetano Veloso (“a deselegância discreta de suas meninas”, Santa Rita das minas de Sampa) e velada no Planetário Ibirapuera, o mesmo lugar de cujos restos mortais ela debochou – “aqui estamos nós/ turistas de guerra/ bizarros casais/ restos mortais do Ibirapuera”, como formularam Rita e o marido carioca Roberto de Carvalho, em “Vírus do Amor”, de 1985. Os restos mortais do Ibirapuera merecem virar restos mortais do Ibirapuera Rita Lee?
Enquanto o Rio de Janeiro rebatizou o Galeão de Aeroporto Internacional Tom Jobim, em homenagem (e não mulheragem) ao filho ilustre compositor de “Garota de Ipanema”, os paulistas provavelmente problematizarão em massa a transmutação do Ibirapuera em Parque Rita Lee. Não admitiriam um Museu Rita Lee na Vila Mariana, um Museu Mutantes na Pompeia, uma estátua gigante de Rita Lee no lugar do Borba Gato ou ajudando o empurra-empurra dos bandeirantes no Monumento às Bandeiras localizado no…Ibirapuera. Paulistas e paulistanos não têm orgulho de si próprios, muito menos teriam de outros paulistas e paulistanos. São Paulo é London e New York, jamais São Paulo, cruzes! (como diria Rita Lee).
Imaginem o escândalo se alguém ousasse batizar o vindouro Parque Bixiga de Parque Bixiga Adoniran Barbosa ou do mais óbvio Parque Bixiga Zé Celso Martinez Corrêa. Quem ousaria criar uma Avenida Itamar Assumpção no bairro da Penha, trocar a Avenida Ataliba Leonel por Avenida Vange Leonel ou Avenida Nando Reis (ou seja, trocar bisavô por bisnetos) ou mudar o nome do bairro exclusivo de Alphaville para Fábio Jr.? Imagine vandalizar marcas capitalistas sacrossantas e trocar a Estação Pernambucanas-Paulista do metrô por Estação Paulista Inezita Barroso, Rolando Boldrin ou Titãs, ou a Estação Higienópolis-Mackenzie por Estação Higienópolis Mano Brown, Renato Teixeira ou Leny Eversong.
Imagine modificar a Estação Brás para Estação Brás Isaura Garcia, Estação Armênia para Estação Armênia Dalva de Oliveira, Estação Barra Funda para Estação Barra Funda Geraldo Filme, Jair Rodrigues ou Miriam Batucada. Ou, reproduzindo uma reivindicação real, por que teremos o Metrô 14-Bis, em homenagem ao mineiro Santos Dumont, em vez de Metrô Saracura-Vai Vai, em memória do córrego, do quilombo e da escola de samba removidos daquele mesmo lugar? Por que não temos a Ferroviária Irmãs Linda e Dircinha Baptista ou a Rodoviária Irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista?
E se a Arena Corinthians, hoje chamada Neo Química Arena (???), virasse Arena Corinthians Racionais MC’s e o Allianz Parque (???) se tornasse Parque Palmeiras, a Estação São Bento mudasse de religião para Estação Dom Salvador, Erlon Chaves ou Tony Tornado? E se o Teatro Safra se transformasse em Teatro Plínio Marcos, o Teatro Renault em Teatro Sérgio Mamberti, o Teatro Sabesp em Teatro José de Abreu, o Teatro UOL para Teatro Fauzi Arap ou Antônio Abujamra…? Se o bairro da Luz, mais popularmente conhecido como a velha Boca do Lixo, voltasse à luz como Elvira Pagã, Mazzaropi ou Zé do Caixão? Se é para a Praça Roosevelt ter nome gringo, por que não Praça Celly Campello, Jerry Adriani ou… Rita Lee? E se os skatistas gostam tanto da Praça Roosevelt, por que não Praça Chorão? E os trens? Estação Jaçanã ou Estação Jaçanã Adoniran Barbosa? Grajaú ou Grajaú Criolo? Radial Leste ou Radial MC Daleste?
Voltemos à pergunta inicial: o que haveria de absurdo em rebatizar logradouros públicos paulistas e paulistanos com os nomes de Rita Lee e de quaisquer outros artistas citados (ou não) na lista amalucada acima? Se o Elevado João Goulart até outro dia ostentava nome de general ditador sanguinário e uma infinidade de locais públicos continuam atendendo por nomes de bandeirantes, barões, viscondes, grileiros e outros genocidas contumazes? A celeuma e a resposta ficam a cargo de cada um de nós, e que se abram os debates.
(*) Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)