Aos 60 anos do golpe empresarial-militar de 1964 no Brasil, muito se tem falado sobre os impactos irreversíveis desse acontecimento em nossa história nacional. Mas como o golpe de 1964 impactou a região latino-americana?
O golpe de 1964 representou uma forte derrota do paradigma reformista em toda América Latina. Ao bloquear violentamente o processo de reformas estruturais conduzido por Jango, o golpe abriu caminho para a transição a um novo modelo de crescimento capitalista – posteriormente disseminado em toda região. O novo modelo trocava o princípio da demanda efetiva puxada pelo aumento de salários e distribuição de renda por um programa de modernização violentamente excludente, que localizava o motor do crescimento na concentração de renda e no endividamento externo.
É fundamental ter em vista que as reformas de base de Jango não eram uma invenção nacional. Muito pelo contrário: eram a versão brasileira de um programa reformista essencialmente latino-americano, construído em âmbito internacional por intelectuais e políticos da CEPAL e por movimentos populares e camponeses dos mais variados países. Sobretudo depois da revolução cubana de 1959, em todo continente, os trabalhadores, camponeses e estudantes impulsionaram a aceleração e radicalização do programa da CEPAL, com lutas de massa e pressão de baixo para cima.
Enquanto isso, no começo dos anos 1960, operadores da política nacional-desenvolvimentista de toda América Latina tentavam driblar a escassez de divisas e os desequilíbrios do processo de industrialização por substituição de importações, e até certo ponto mantinham-se fiéis à necessidade de quebrar a estrutura social herdada do colonialismo, idealizando a criação de um “capitalismo de bem estar social” na periferia – o que rapidamente se mostrou ilusório. Daí o dilema “socialismo ou fascismo”, formulado por Theotônio dos Santos, parecer tão assertivo para época.
É largamente comprovado que Jango era o favorito para as eleições presidenciais de 1965 e poderia utilizar seu segundo mandato para aprofundar o processo reformista democrático. As reformas de base teriam o efeito de reduzir as desigualdades por meio de uma significativa reorientação do sentido do capitalismo brasileiro. Porém, os militares e o empresariado desviaram o curso dos acontecimentos e impuseram sua agenda repressiva, com redução salarial, concentração de renda e espoliação de terras indígenas e camponesas sem precedentes na história da república.
Ao derrotar a CEPAL e o reformismo de matiz nacional-desenvolvimentista, o golpe de 1964 no Brasil foi um divisor de águas e abriu uma nova fase do capitalismo latino-americano.
Ensaios na Guatemala e no Paraguai
Dez anos antes do golpe de 1964, os Estados Unidos tinham realizado dois golpes que seguiram a cartilha da CIA: na Guatemala e no Paraguai, ambos em 1954. Apesar de terem ocorrido em países pequenos, foram estratégicos para o controle paulatino do processo político no território latino-americano.
Na Guatemala, os EUA derrubaram o presidente democrático Jacobo Árbenz em junho de 1954. Árbenz era um militar reformista que participou da revolução guatemalteca de 1944 e da elaboração da primeira constituição democrática da história do país, em 1945. A principal bandeira do presidente era a reforma agrária, num país em que a multinacional United Fruit Company controlava 50% das terras agrícolas. Os interesses estadunidenses foram ameaçados com o decreto 900 de 1952, que abriu um processo expropriatório e redistributivo de milhares de hectares da United Fruit. Era um precedente e tanto. Árbenz também quebrou monopólios estadunidenses de transporte, telefonia e energia. O golpe contra ele foi diretamente articulado pelos irmãos Dulles, da CIA, e Árbenz se refugiou no México.
No Paraguai, o golpe de Alfredo Stroessner em 1954 contra outro golpista de seu mesmo partido abriu as portas para a instalação de um escritório estadunidense da Escola das Américas no centro da América do Sul. Em 1956, o tenente-coronel norte-americano Robert Thierry chegou ao país para fundar a Direção Nacional de Assuntos Técnicos (DNAT) do Ministério do Interior, ou “La Técnica”, uma escola de tortura. Dois anos mais tarde, Thierry considerou La Técnica pronta para formação local de torturadores.
Mas foi só em 1964, com o golpe no Brasil, que se consolidam as tendências da Guatemala e do Paraguai: primeiro, o bloqueio do reformismo e, segundo, a institucionalização da doutrina de segurança nacional, desenhada pela elite orgânica multinacional para “legitimar” as guerras contra os chamados “inimigos internos”.
1964, divisor de águas
A partir do golpe de 1964, outros governos reformistas latino-americanos se sentiram ameaçados. A ditadura brasileira pairava como uma sombra repressora sobre a região.
A começar pela Bolívia, que, em novembro de 1964, viu seu presidente reformista, Victor Paz Estenssoro, ser derrubado por outro golpe militar pró-CIA. Se uma revolução no Brasil nos tornaria “uma nova China” (e não uma “nova Cuba”, como disse o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon), os EUA temiam o reformismo da Bolívia sobretudo por razões geopolíticas. Considerada o centro geopolítico da América do Sul, a Bolívia já havia atravessado uma enorme transformação social em 1952, e os EUA ainda temiam que seu desdobramento ou radicalização, doze anos depois, gerasse um eixo territorial articulador das esquerdas na América do Sul.
Em 1968, o presidente do Peru, militar e nacionalista Juan Velasco Alvarado, que levava adiante reformas estruturais de tipo cepalino (mas na ponta do fuzil), foi violentamente derrotado por Francisco Bermúdez, outro militar extremista pró-CIA, que conduziu o país a um regime sanguinário até 1980. No Equador, outro Velasco foi derrubado em 1972: o presidente eleito José Maria Velasco Ibarra, que não conseguiu concluir seu mandato e precisou se exilar na Argentina, escapando de um golpe pró-CIA.
Em 1973, os militares brasileiros influenciaram estrategicamente mais dois golpes: em junho, no Uruguai, e em setembro no Chile. A participação direta dos militares brasileiros no golpe de Augusto Pinochet no Chile, que derrubou o presidente socialista Salvador Allende, foi vastamente investigada no livro Brasil contra a democracia – a ditadura, o golpe no Chile e a guerra fria na América do Sul, de Roberto Simon.
É a partir do golpe chileno de 1973 e do golpe argentino de 1976 que um novo paradigma capitalista começa a ser operacionalizado na América do Sul. Se por um lado podemos dizer que o neoliberalismo latino-americano nasceu destas duas ditaduras, não se deve perder de vista que a reforma financeira da ditadura brasileira, ainda em 1964, alavancou por aqui o capitalismo de ações, um sistema bancário altamente concentrado, a lógica rentista do empréstimo direto em dólares pela burguesia interna e revenda especulativa, abrindo caminho para a conglomerização do capitalismo brasileiro. A concentração das finanças promovida pela ditadura, especialmente na gestão Delfim Netto no ministério da Fazenda (durante Costa e Silva e Médici), foi sem precedentes, e sem dúvida serviu de base ao neoliberalismo brasileiro.
O golpe de 1964 no Brasil foi um marco decisivo da história latino-americana. Foi a avenida aberta para a derrota do reformismo da CEPAL e o triunfo da modernização repressiva e conservadora, que se disseminou no continente na década seguinte.
(*) Joana Salém é Historiadora da América Latina contemporânea, Doutora em História Econômica pela USP e professora da UFABC.