Os 60 anos do Golpe Militar de 1964, “comemorados” nesta semana, transcorrem sob o signo do negacionismo, do revisionismo e das tentativas de apagamento histórico. Aparentemente análogas, essas posições refletem, na verdade, opiniões bem diferentes. Em comum mesmo, apenas a dificuldade de articular passado, presente e futuro, mobilizando a verdade histórica para um diagnóstico crítico do presente em nome de uma perspectiva transformadora de futuro.
Dentre os abertamente negacionistas, a posição mais emblemática foi a das Forças Armadas, expressa pelo ex-general, ex-vice-presidente da República e hoje Senador, Hamilton Mourão. O militar escreveu na sua principal rede social: “A história não se apaga e nem se reescreve, em 31 de março de 1964 a Nação se salvou a si mesma!”.
A “Nação se salvou a si mesma” é expressão de 1964 e sintetiza, na forma e no conteúdo, a visão saudosista da ditadura que predomina não só nas Forças Armadas, mas na direita tradicional de modo geral. Para eles, o bom mesmo era o Brasil do passado. Passado, vale frisar, totalmente falsificado, ao qual querem retornar, negando, para tanto, o Brasil do presente e do futuro.
Essa visão, oficialmente ensinada nas escolas e colégios militares país afora, evidencia o desprezo dos militares pela Nova República (democrática), regida pela Constituição de 1988, e ajuda a explicar porque, na prática, as Forças Armadas operam como instituição à parte do Estado, negando seus princípios constitucionais mais básicos.
Essa posição se contrapõe, por óbvio, aos críticos da ditadura. Mas ao falar explicitamente em “apagamento” e “reescrita” da história, Mourão se referiu, na verdade, a outras duas posições – menos evidentes – que se fizeram importantes neste aniversário de 60 anos do golpe, a saber: os revisionistas e os escapistas.
O revisionismo merece atenção porque é a posição que vem ganhando mais força na extrema-direita brasileira. Diferentemente dos militares, seus adeptos não cultuam a ditadura, nem como essencialmente positiva nem como um regime fundado em 1964.
Para eles, em 1964, como em 2016, o que houve não foi golpe. Foi o afastamento legítimo, pelo Legislativo, e com aval do Judiciário, de um presidente que deixou vaga a presidência da República, tal como declarou Ranieri Mazzili, na noite de 02 de abril, com apoio da maioria do Congresso e sob gritos isolados de “Canalha!”. O que aconteceu depois disso, nessa visão, foi um governo de transição, liberal em todos os sentidos, que não conseguiu completar o propósito de convocar novas eleições porque a radicalização da esquerda, principalmente da parcela comunista que aderiu à luta armada, obrigou os militares a operarem um fechamento progressivo do regime, que culminou no AI-5 em 1968. A culpa pelo advento da ditadura de 1968 seria, portanto, da esquerda, e não da direita, incluindo, nessa parcela inocente, os militares.
Mas os revisionistas vão além na sua livre-interpretação dos fatos ao afirmar que o abandono dos princípios liberais na política foi acompanhado, também, de um abandono do liberalismo na economia. Nesse sentido, para esses revisionistas, o regime que se instalou a partir de 1968 foi, além de uma ditadura política, uma ditadura econômica, ao assumir o intervencionismo desenvolvimentista de viés nacionalista. Isso explica porque, na visão deles, a ditadura foi antes “de esquerda” do que “de direita”, tanto assim que permitiu, a partir dos anos 1970 – e sempre segundo essa perspectiva “alternativa” –, a total hegemonia da esquerda em todas as instituições, especialmente no universo cultural formado pela imprensa, pelas instituições educacionais e pelo mundo das artes.
Essa posição pode parecer esdrúxula para quem conhece minimamente as interpretações históricas consolidadas, mas basta ver o documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”, da produtora Brasil Paralelo, para constatar que é muito mais popular do que parece.
É evidente que os revisionistas compartilham com os negacionistas a falsificação do passado. Porém, o fazem não para cultuá-lo como fonte de inspiração para o presente, mas para reinterpretá-lo – na contramão dos fatos históricos consolidados – em nome de um projeto alternativo de futuro. Um futuro ultraliberal, autoritário se necessário, mas, sobretudo, profundamente anticomunista. Como é anticomunista, também, o imaginário militar: a nação salvou-se a si mesma – faltou dizer; embora nem precisasse –, “do perigo comunista”.
Curiosamente, parte dos que a direita conservadora e a extrema-direita reacionária consideram “comunistas” aderiram a uma terceira posição que foi, certamente, a mais surpreendente nesse aniversário do golpe: o escapismo, que flerta com o apagamento histórico.
Trata-se, por óbvio, da posição do governo Lula III de silenciar diante dos 60 anos do golpe. Essa posição foi explicitada e justificada pelo próprio presidente, para espanto geral, em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, em 27 de março. Ao ser perguntado como o governo trataria os 60 anos do golpe militar de 1964, Lula respondeu:
“Eu, sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente”
Lula, é evidente, não nega que o golpe foi golpe nem que a ditadura foi ditadura. Também não reinterpreta o seu significado à revelia dos fatos históricos. Lula adere, na verdade, a uma posição “escapista”, que busca inscrever o passado definitivamente no passado, minimizando sua importância para o presente, esse sim, realmente importante.
Não é à toa que Lula fundamenta sua posição explicando que, na verdade, está mais preocupado com o 8 de janeiro de 2023 do que com 31 de março de 1964 – ambos, para ele, golpes, mas de importância distinta, um porque pertencente ao passado, sem maiores implicações para o presente, enquanto o outro, esse sim, parte do presente e, como tal, ameaça.
A posição de Lula, além de ser a mais surpreendente, é também a mais reveladora dos limites impostos por uma perspectiva incapaz de articular passado, presente e futuro em função de um projeto político realmente transformador.
Sem “remoer” o passado, como explicar a tutela militar que inspirou os golpistas de 8 de janeiro?
Sem “remoer” o passado, como entender a subordinação das elites econômicas e políticas à perspectiva norte-americana dos nossos problemas, confinando as políticas nacionais de desenvolvimento aos limites do neoliberalismo?
Sem “remoer” o passado, como entender os efeitos de décadas de uma anti-política de segurança pública que leva dos esquadrões da morte às milícias e das milícias a novos esquadrões da morte?
Sem “remoer” o passado, como entender que o Brasil vive sob o signo de projetos interrompidos toda a vez que as elites decidem que a inclusão social já foi “longe demais”?
Sem “remoer” o passado, como entender a persistência das desigualdades de vários tipos e sua relação com uma inserção internacional essencialmente dependente?
Nesse sentido, o escapismo de Lula não se confunde com os conservadores tradicionais que idealizam um passado falsificado e o projetam sobre o presente; nem, tampouco, com os reacionários revolucionários que querem reescrever o passado em nome de um futuro distópico.
A posição que Lula revela, na verdade, os limites de uma esquerda refém do presente por sua incapacidade de imaginar um outro futuro.
Como consequência desse hiper-realismo dos prisioneiros do status quo, a esquerda “pragmática” precisa fazer do presente sua utopia, o que só é possível minimizando o impacto do passado, na tentativa de invisibilizar a profundidade dos problemas, tensões e contradições que é incapaz de superar. Se eu não gosto do que está escrito, basta virar a página. Dá-lhe, então, página virada.
Em suma, portanto, para além de remeter a um necessário debate epistemológico, sobre o processo de construção e desconstrução da verdade histórica, a força de posições negacionistas, revisionistas e, principalmente escapistas nos 60 anos do golpe é relevadora de uma dimensão essencial da vida política brasileira atual: a sua dificuldade de trabalhar com um horizonte histórico verdadeiramente transformador, em que a sociedade possa ser substancialmente diferente desta que está aí.
Nesse sentido, a resistência em encarar o passado na sua verdade histórica é reveladora, antes de mais nada, da incapacidade de lidar criticamente com o presente para, a partir dele, construir um outro futuro.
(*) Maria Caramez Carlotto é professora de Sociologia e Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC.