Você certamente já ouviu falar ou até já estudou sobre a revolução francesa. Liberdade, igualdade, fraternidade: a culminância dos ideais iluministas tem capítulos privilegiados nos livros de História do currículo escolar brasileiro. Raramente, no entanto, se poderá dizer ter estudado a maior revolta de escravizados da história colonial, realizada justamente com inspiração nos ideais dessa mesma revolução, contra os próprios franceses, na colônia caribenha do Haiti.
Isso porque, como afirmam Giovani José da Silva e Marinelma Costa Meireles, “a ausência da diversidade, a consagração de determinados temas que ao longo do tempo se tornaram canônicos e a onipresença europeia nas narrativas históricas/ historiográficas no Brasil, apontam para uma formação racista, homofóbica, misógina, machista.”[2]
A revolta do Haiti foi certamente um dos eventos canônicos mais importantes do mundo contra-colonial e influenciou diretamente no recrudescimento das leis escravocratas no próprio Brasil, mudando profundamente as dinâmicas e as estratégias, por um lado no sentido de impedir revoltas parecidas por aqui, por outro no sentido da garantia da própria sobrevivência, no que diz respeito às pessoas escravizadas.
Em meio à ebulição da Revolução Francesa, a ilha de São Domingos, então colônia francesa, presenciava um turbilhão de mudanças. A autonomia e representatividade conquistadas no parlamento local acirraram as disputas entre brancos e mulatos, enquanto a população escrava se levantava em busca de liberdade. Em 1791, o que começou como uma rebelião se transforma em uma revolução de proporções épicas, envolvendo França, Espanha e Inglaterra em um conflito sangrento.
Sob a liderança inspiradora de Toussaint L’Ouverture, negros e ex-escravos conquistaram o direito de governar a ilha, ainda sob a tutela francesa. Mas a luta não havia terminado. Em 1804, sob o comando de Jacques Dessalines, o Haiti se separa definitivamente da França, orgulhosamente proclamando sua independência. A ilha, dividida em duas partes, viu o Haiti se tornar a primeira república negra do mundo, enquanto a parte oriental permaneceu sob domínio espanhol, formando a República Dominicana.
A Revolução Haitiana ecoou por todo o continente americano, servindo como um farol de esperança para as classes oprimidas. O “haitianismo”, termo que definia a influência da revolução sobre negros, mulatos e escravos em todo o atlântico, representava o medo que os senhores brancos sentiam da perda de seus privilégios.[2]
O preço pela revolução foi caríssimo. Uma colônia nas Américas jamais poderia prosperar de uma revolução realizada derramando o sangue dos colonizadores, e a resposta, além de um embargo econômico, foi a cobrança dos franceses à jovem nação do pagamento de taxas para a garantia de sua independência no valor de 150 milhões de francos, o dobro do que os Estados Unidos pagaram no acordo pela Louisiana. Quase literalmente sob a mira de uma arma, o Haiti cedeu às exigências da França para garantir a sua independência. O montante era tão elevado para a jovem nação pagar imediatamente que ela teve de contrair empréstimos com taxas de juro elevadas junto de um banco francês. Ao longo do século seguinte, o Haiti pagou aos proprietários de escravizados franceses e aos seus descendentes o equivalente a aproximadamente 20 ou 30 bilhões de dólares em valores atuais. Uma dívida que o Haiti levou 122 anos para pagar: custos que poderiam ter sido investimentos cruciais em infraestrutura, educação, segurança. Hoje o Haiti amarga um dos piores PIBs do mundo, um país marcado pela instabilidade política e, mais recentemente, dominado por uma crise de segurança pública que envolve a criminalidade entre gangues pelo controle de territórios que ameaça o país a sofrer uma nova intervenção militar.
Após o terremoto devastador de 2010, que paralisou o Haiti, acadêmicos e jornalistas clamaram para que a França pagasse uma dívida histórica. Em 2020, o economista Thomas Piketty reacendeu o debate, defendendo que a França devolvesse pelo menos 28 bilhões de dólares ao país caribenho. Apesar dos insistentes pedidos, o governo francês tem consistentemente negado essa proposição.
Embora seja crucial abordar os erros do passado, uma abordagem mais impactante para apoiar o Haiti pode estar em abrir portas, não necessariamente as carteiras. Oferecer refúgio aos refugiados haitianos não seria apenas um gesto humanitário, mas tem o potencial de melhorar significativamente a vida dos refugiados e de suas famílias em casa, ao mesmo tempo que impulsiona a economia haitiana.
Dados do Banco Mundial revelam que em 2018, os expatriados haitianos enviaram a impressionante quantia de 3 bilhões de dólares de volta para seu país em remessas, o que representa quase um terço de todo o PIB do Haiti. Ao acolher refugiados haitianos, podemos desbloquear um poderoso motor econômico, impulsionando o crescimento e contribuindo para um futuro mais brilhante para o Haiti.
Esta solução, nascida da empatia e da previdência, tem o potencial de criar um caminho mais sustentável e impactante para o Haiti.