Em 2004, David Bowie sofreu uma cirurgia cardíaca de emergência. Num comunicado oficial, informou-se que ele fizera uma (bem-sucedida) angioplastia, ou seja, uma cirurgia de desobstrução arterial. Passaram-se seis anos (e sete desde o lançamento de seu disco mais recente, Reality), e permanece cercado de mistério o que aconteceu na ocasião – e o que vem acontecendo desde então com um dos mais importantes artistas pop das últimas cinco décadas.
O jornalista norte-americano Marc Spitz termina o livro Bowie – A Biografia (recém-lançado no Brasil) especulando, como quem não quer nada, sobre o estado de saúde de Bowie. Divaga, por exemplo, sobre a possibilidade de Reality ter sido o “canto de cisne” do cantor e compositor inglês. O tom de fofoca é despistado, mas esse é um gosto que permance na boca ao final da leitura. O biógrafo, ex-jornalista da revista musical Spin, não se aproximou de Bowie para escrever o livro e, apesar de dezenas de outras entrevistas, tem pouco a esclarecer sobre o tal mistério.
Divulgação
Capa do livro de Marc Spitz: A Biografia
É um final parado no ar de uma biografia que revisa uma vida espetacular, mas o faz de modo frio, às vezes gelado, mesmo por sobre declarações apaixonadas pelo biografado. Spitz transfere para Bowie esse clima congelado no ar. Embora nunca seja totalmente explícito a esse respeito, ele descreve Bowie como um homem incapaz de amar.
O amor pelo pai foi interrompido por sua morte precoce em 1969, pouco antes de o filho alcançar um muito aguardado estrelato, com o hit Space Oddity – fábula macabra sobre Major Tom, um astronauta perdido para sempre no espaço, como seria seu autor, a crer nas pistas recolhidas por Spitz.
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Um irmão mais velho esquizofrênico se atirou embaixo de um trem em 1985, quando Bowie começava a viver o rescaldo de sua fase de maior popularidade, a de Let’s Dance, de 1983 – David não compareceu ao enterro de Terry. A mãe, com quem segundo o biógrafo ele sempre teve uma relação distante, morreu aos 88 anos, em 2002, numa casa de repouso a um oceano de distância do filho estabelecido em Nova York.
A primeira esposa foi Angie Bowie, crucial figura de bastidor na invenção do alter-ego bissexual Ziggy Stardust (1972), um ser interplanetário (Major Tom?) que descia à Terra para ser astro pop. Spitz reporta o aviso de Bowie a Angie antes de se casarem: ele não a amava. O jornalista pouco se debruça sobre o casamento (desde 1992) com a ex-modelo somaliana Iman, Quando o faz, invariavelmente refere-se a ela como a única pessoa no mundo de quem Bowie, hoje com 63 anos, tem medo.
Teria sido o suburbano David Jones, um homem assim tão gélido e obcecado por ganhar dinheiro, o forjador da persona quente conhecida por David Bowie? Ou seria o próprio bloqueio amoroso a sólida ponte de ligação entre Bowie e seus milhões de fãs ao longo das décadas? Quanto do gelo teria sido injetado pelo biógrafo no biografado?
O que Spitz e nós temos para responder a tais angústias não é muito mais que apenas dois discos concebidos e lançados por Bowie na primeira década do século XXI. O biógrafo os chama de discos “pós-ambiciosos”, e demarca com precisão os humores de depressão, cansaço e morte que os atravessam. Como Spitz aponta, o crepúsculo começou antes mesmo, em Hours… (1999), cuja capa exibe Bowie qual Cristo atirado no colo de uma Pietá que é… Bowie.
Arquivo
Capa do álbum Hours, lançado em 4 de outubro 1999
“Nada permanece/ (…) na verdade, este é o começo de nada”, diz em Sunday, a primeira canção de Heathen. “Tenho fé nos medicamentos”, afirma adiante, em Afraid, demonstrando que os temores não emanam só de Iman: “Eu ainda tenho tanto medo”. “Eu sou o cara mais sortudo/ não o cara mais solitário do mundo/ não eu/ não eu”, lastima-se em The Loneliest Guy, de Reality. A menos que Bowie escreva seu próprio livro contando o que se passa ali por dentro, continuaremos aqui fora, sozinhos, nos perguntando se afinal ele era ou não era o Major Tom daquela canção tão prematura (como definiu em 1980 em Ashes to Ashes, outra canção de gelar a espinha), Space Oddity.
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.
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