“A ditadura fascista, longe de destruir o movimento revolucionário do povo, apenas criará poderosos coveiros do imperialismo americano. O fascismo não salvou Hitler da destruição. Tampouco pode salvar o imperialismo dos EUA do seu destino final” — Panteras Negras [1]
É um ledo engano procurarmos na história uma repetição dos fatos, mas existem coincidências curiosas.
O grupo supremacista e neonazista de eleitores de Donald Trump invadiu o Capitólio, sede do Congresso norte-americano em Washington. Na ocasião, era realizada a contagem oficial dos votos do Colégio Eleitoral definidos nas eleições presidenciais de novembro, que decretaram como novo presidente o democrata e ex-vice de Barack Obama, Joe Biden. Em consonância com os brados exaltados dos apoiadores, pudemos analisar de maneira concreta as contradições intrínsecas ao sistema de formação da própria nação norte-americana, moldada e construída em bases racistas, genocidas e firmemente discriminatórias.
É necessário pontuar, desde o início, que a movimentação não se trata de um golpe de estado, mas um ensaio, uma mera construção que visa a possível ruptura. Isso se dá por conta da pouca articulação necessária para o golpe de Estado incisivo logo de início. Se mostra mais proveitoso explorar as condições pré-posse de Biden para sondar o ambiente e o mais importante: demonstrar força. O grupo agitado por Trump sabe que representa os ideais sob os quais os Estados Unidos construíram sua hegemonia, pouco sendo vistos como ameaça, já que são um expoente extremado e pouco disfarçado da própria política oficial da nação. A partir de acontecimentos como esse podemos ponderar sobre alguns aspectos da construção que é direcionada para uma ruptura total: o fomento à oposição como forma surpresa de atuação; a destruição contínua das instituições; e manutenção da hegemonia de discurso, ponderando a base lapidar de ideias do grupo como a única saída para o retorno dos Estados Unidos como centro econômico global. É necessário explorar os agentes além do fenômeno como fim em si.
Vejamos a força policial em ação durante a ocorrência. As forças de defesa do local foram suprimidas de maneira rápida, com enfrentamentos pontuais. A quebra do idealismo do braço armado do Estado como agente de defesa da população encontrou-se observável dentro da situação concreta em poucos segundos, justamente pelo fato de não ter ocorrido enfrentamento, muito menos deslocamento de forças para conter a invasão. A repressão policial foi branda, chegando a ser risível — em ocasiões, policiais recuaram após serem atacados com o líquido de um extintor de incêndio, enquanto outros tiraram fotos com integrantes do grupo invasor durante uma “pausa” no expediente.
Não nos custa lembrar o caráter de defesa e manutenção da ditadura de classe, elemento esse que é justamente preservado pelas forças policiais. Durante as manifestações do movimento Black Lives Matter, um efetivo oficial do exército e grupos de operações especiais da polícia foram destacados para manutenção da ordem. E o tratamento foi diferente, como vimos nas explícitas cenas de repressão letal por parte dos oficiais. A polícia, dentro do Estado burguês, nada mais é do que a guarda-costas da determinada classe dominante. Como instituição, é racista, supremacista e firmemente ligada aos interesses de classe. Alguns representantes de governo solicitaram um pequeno deslocamento de forças especiais para a capital. Pedido, obviamente, negado. Aliás, como solicitar apoio de um braço armado que compactua com os ideais de seus próprios “infratores”?
Qual “democracia” americana?
Mao Zedong, em 1949, destacava: “os governos de Hitler, Mussolini, Tojo, Franco e Chiang Kai-shek descartaram o véu da democracia para a burguesia ou nunca o usaram porque a luta de classes em seus países era extremamente intensa e descobriram que é vantajoso descartar ou não usar esse véu para que as pessoas também não façam uso dele”. Mao na época também previu que o mesmo caminho seria trilhado pelo imperialismo dos EUA.[2]
O episódio assistido pelo mundo todo no Capitólio expõe de forma cristalina as contradições da formação colonial e supremacista do Império estadunidense. A autointitulada “maior democracia do mundo” é exposta em sua essência uma Herrenvolk democracy (democracia do povo de senhores), como bem atenta Domenico Losurdo.
Para o liberal Norberto Bobbio, que Losurdo chama de “a parte mais formalística do liberalismo”, a definição mínima de democracia é “a possibilidade de eleições, onde os eleitores possam escolher entre alternativas reais”. Deste modo, relembra o marxista, que;
nos EUA, apesar da escravidão e dos presidentes donos de escravos, podemos afirmar que existia a democracia, pois, através das eleições, o governo podia ser substituído por outro governo sem violência. (…) vale também para a África do Sul do apartheid, com uma sucessão de governos eleitos democraticamente, apesar do apartheid. [3]
Esse é um ponto central para entender os recentes ocorridos. Longe do estéril turbilhão das discussões engravatadas nos estúdios Globo News, onde a centralidade de um desesperado falatório que tenta a duro custo construir uma narrativa de que tais movimentações são uma tensão excepcional na universal democracia americana, está a realidade antidemocrática e racista que escancara que essa “tensão antidemocrática”, longe de ser exceção, é tão banal quanto é certo que não será a última das sístoles do já não tão saudável coração do Império.
Quando vista pelas lentes da Herrenvolk democracy que Losurdo apresenta, a construção político-social estadunidense passa a fazer mais sentido, principalmente em relação as torpes definições formalistas dos liberais. A democracia para o povo de senhores dos Estados Unidos da América é construída pela negação de qualquer tipo de participação democrática e titularidade de direitos para negros, povos originários, imigrantes, mulheres e trabalhadores em geral. Isso é projetado também em plano internacional, na forma de assassinatos, sabotagens, embargos, proxy wars e golpes de Estado patrocinados direta ou indiretamente pelo governo americano, que constituem sem margem de dúvida, duras violações à soberania dos países invadidos. Porém, esse retorno à doutrina Bush, fortemente assentada sobre bases fundamentalistas que pregam os EUA como um povo escolhido por Deus para guiar o mundo, para os liberais nada tem a dizer sobre a (falta de) democracia no país, que impõem uma fictícia cisão entre o doméstico e o internacional. Pois bem.
No plano doméstico, pode-se afirmar que, desde as suas origens, o regime político estadunidense tem raízes na supremacia racial. Junto da abolição da escravização, o fim da Guerra de Secessão marca a consolidação de uma breve democracia multiétnica (Reconstruction), que se conclui em 1877. Uma vez reconquistado o poder político dos latifundiários ex-donos de escravos do Sul, os negros dos EUA perdem, além de seus direitos políticos, seus direitos civis. É instaurado no país um regime de completa segregação racial. Sem entrar nos detalhes de um complexo processo de longa duração, durante o maior tempo de existência dos EUA enquanto país, a supremacia racial– da escravização à segregação, das leis Jim Crow à Ku Klux Klan — foi regra, e a formação social dos Estados Unidos é baseada na sistemática subjugação racial do que foi chamado de “Under Man”, que viria a ser resgatado como “Untermensch” pela doutrina do Terceiro Reich. Foi Stoddard que influenciou Hitler, e não o contrário. É o que Losurdo busca sintetizar no trecho:
O fato é que, muito antes do advento do Terceiro Reich, os Estados Unidos da white supremacy são um modelo para aqueles que almejam a adoção, também na Alemanha e no Império Austro-Húngaro, de uma política racial e eugênica.[4]
O poder constituído nos Estados Unidos decorre da supremacia branca e é indissociável dela. O ocorrido no Capitólio é sintoma do fato de os EUA não terem resolvido a sua íntima relação com o racismo até o presente momento. O terror racial ainda é realidade no país, como sinalizam os brutais casos de assassinatos de pessoas negras pelas forças policiais norte-americanas. De mesma forma, o sistema carcerário do país tem em sua superpopulação uma sistemática encarceramento dos negros no país, justificada por uma genocida política de “Guerra às Drogas”. Nesse escandaloso cenário, as surpresas declarações da imprensa hegemônica sobre uma exceção antidemocrática demonstram uma completa alienação em relação a completa falta de democracia existente para a maioria do povo estadunidense.
Qual livre imprensa?
A mídia deu um tratamento peculiar ao acontecimento. Todos os portais brasileiros de comunicação — ao menos os que caracterizamos como grande mídia ou emissora de massa — noticiaram com certo espanto a ruptura interna do país que supostamente abarca o modelo infalível de democracia. Vale reforçar um modelo às reportagens produzidas, assim como nas rodas de debate ao vivo: o caráter padrão de amenização de danos à imagem da democracia norte-americana, elevando o termo para fora do seu sentido organizativo político, mas o colocando em um campo do sentir, o inserindo em um escopo do irracional, da defesa do abstrato como valor universal. A tática tem como valor principal a reafirmação do conceito liberal de democracia como o único motor da história. A democracia derrapa para fora do sentido figurado, tomando a forma concreta da liberdade dos comuns em si. É muito notável neste tipo de cobertura a defesa aberta das instituições e a defesa à própria imprensa em si como defensora do sistema que configura a manutenção da ordem.
Basta retomarmos as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, observar todas as suas formas de administração, analisar a suposta liberdade de imprensa, que é desfeito o mito inquebrantável da retaguarda de liberdade pressuposta pela democracia burguesa. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar-se contra o que lhe faz afronta. A imprensa, sendo parte fundamental do processo de manutenção da hegemonia econômica, não poupa esforços para defender a suposta “ordem”. Travestida de democracia, ela passa a ser um conceito passional adotado por diversos setores, inclusive da esquerda liberal, colocando erroneamente o meio formal de opressão como se fosse a própria vanguarda dos oprimidos.
Todos os portais brasileiros de comunicação — ao menos os que caracterizamos como grande mídia ou emissoras de massa — noticiaram com certo espanto a ruptura interna do país que supostamente abarca o modelo infalível de democracia. O G1, por exemplo, fez uma junção de aspas sobre o ocorrido, trazendo pronunciamentos oficiais, contextos jurídicos e opinião de especialistas. Estes, em sua grande maioria defensores da ditadura de classe burguesa, não pouparam caricaturas e expressões faciais de descrédito no que acontecia. A barbaridade apontada como quebra da noção de democracia era muito rara a seus mirantes que somente atentam o olhar pouco crítico aos polos do imperialismo moderno. O que acontecia era simplesmente o que os Estados Unidos impõem a países da periferia do capital e nações que buscam sua autonomia. Mas é claro que isso não importa quando se joga do lado do opressor.
A mídia burguesa mais uma vez mostrou-se ser aliada do processo de normalização e integração profunda do fascismo em suas raízes. Não houve um embate de ideias e questionamento da violência policial, enfaticamente utilizada para conter os “vândalos” de movimentos sociais; não houve tensão do conceito de democracia, reforçando a ideologia dominante de enxergar somente como povo os detentores do poder, que escravizam e subjugam o que for necessário para manutenção de seu poder; pouco houve, também, uma análise crítica dos pequenos processos de ruptura dentro do país, partindo para uma defesa abstrata das instituições como moderadoras dos processos. Exclui-se a ideologia, a luta de classes e suas contradições, excluindo também a própria noção do que se é noticiar. Separam-se os fatos em grupos, que serão construídos de forma simbólica e imagética pelo viés da ideologia dominante. Se é necessário que o jornalista transforme o crivo crítico em algo acessível, o profissional a serviço dos interesses econômicos da classe dominante manipula a informação para adequá-la ao contexto de normalização da opressão, como forma legítima de defesa da ordem. Basta ver o assassinato de George Floyd e a guerra racista do governo norte-americano contra seu próprio povo serem noticiadas sempre pautadas em termos de violência policial e política pública. Oculta-se o nome do boi para sensibilizar a questão de seu abate.
Em colunas de opinião se demonstrou a crença liberal ideológica do reforço da dominação do Estado burguês. Em um dos escritos, o jornalista Rodrigo Lopes afirmou que cenas vergonhosas como aquela não condiziam com a tradição democrática dos Estados Unidos da América. Oculta-se, portanto, o caráter colonialista da nação que subjugou e assassinou milhões de nativos e povos ao redor do mundo para impor o seu próprio modelo de democracia, que nada mais é do que a ultra exploração do mercado do capital, assassinato de povos pretos, pobres e periféricos e manutenção da hegemonia ideológica da supremacia.
No UOL o delírio acabou sendo mais elevado. A escritora da coluna, Úrsula Passos, realizou uma comparação pedante e totalmente falsificadora da história ao colocar lado a lado os supremacistas norte-americanos com a Revolução de Outubro, protagonizada pelos Bolcheviques em 1917. Ela disse que a sequência da obra do cineasta Eisenstein, que retrata a tomada do Palácio de Inverno, parecia muito com o ocorrido na capital do imperialismo global. Para fechar, ela conclui dizendo que a grande figura de liderança, na Rússia, era V. I. Lenin, enquanto nos Estados Unidos era o ‘tuiteiro’ Donald Trump.
Em um só disparo de mediocridade se foi demonstrada a manipulação liberal histórica promovida pelo liberalismo e reforçada pelos meios em massa de mídia; o desconhecimento de noções políticas simples, necessárias para uma análise de conjuntura; o viés anticomunista rasteiro dos setores de mídia e daqueles que lá escrevem; a defesa velada do ‘mal menor’, onde é muito mais preferível que supremacistas armados invadam o Capitólio do que vermos o povo rebater as forças de seus algozes opressores.
Talvez o paralelo possa ser feito, mas por outro viés. Os Estados Unidos nos lembram sim outubro de 1917, mas nos recordam as forças que foram destronadas. A nação americana de nada se diferencia da autocracia Romanov, que subjugava a classe trabalhadora com forte repressão, que esmagava movimentos estudantis e intelectuais, que enviava seus cidadãos para uma guerra infame para a defesa da hegemonia dos poderosos, fortalecendo a manutenção do Estado militarizado.
O texto de Úrsula é encerrado com uma imposição de problemática. Segundo ela, “Resta saber se o presidente americano terá o mesmo fim da estátua de Lenin no filme “Adeus, Lênin”. Para os que não assistiram a obra, o busto é derrubado. A nós fica a dúvida principal, e a mais intrigante: quando terão os algozes da classe trabalhadora o mesmo fim da família Romanov, em Ekaterimburgo, na noite do dia 17 de julho de 1918?
Notas
[1] PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS. Antologia — Parte 2, p. 67.
[2] PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS. Antologia — Parte 2, p. 66.
[3] SCAVO, Davide Giacobbo. Uma análise crítica da relação entre liberalismo e democracia: entrevista com Domenico Losurdo, p. 174.
[4] LOSURDO, Domenico. Os Estados Unidos e as raízes político-culturais do nazismo. In: LOSURDO, Domenico. Colonialismo e luta anticolonial, p. 103.
AFP/Télam
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