Nesta semana, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou um projeto de lei que institui sanções ao Tribunal Penal Internacional (TPI) pela decisão de solicitar mandados de prisão a autoridades israelenses devido à guerra em Gaza. O projeto, apresentado pelos Republicanos, recebeu também 42 votos de deputados Democratas.
O projeto ainda tem um caminho legislativo a cumprir, porém já tem pelo menos um efeito: tornar ainda mais evidente aos olhos do mundo a ínfima diferença entre os dois grandes partidos dos EUA quando se trata da agenda externa, mais precisamente, quando se trata de defender Israel e de subjugar os povos do mundo aos interesses dos EUA.
Visto como enclave do Ocidente no Oriente Médio, Israel é, desde pelo menos 1967, parte fundamental dos interesses de Política Externa dos EUA. John Mearsheimer já escreveu sobre o “lobby” israelense no congresso dos EUA; é uma questão já bastante discutida. Mas não se trata apenas de lobby. Israel funciona, para os interesses do complexo financeiro-industrial-militar que domina as instituições estadunidenses, como parte intrínseca dos seus mecanismos de projeção de poder.
De fato o mundo testemunha o “início do fim” do longo percurso trilhado pelos EUA no sentido de estabelecer uma “ordem internacional do pós-guerra”, que incluiu instituições multilaterais que vão da ONU ao FMI e à OMC (a primeira a ser deixada à deriva pelos EUA, já no governo Trump), e da qual nasceram instituições como o próprio Estatuto de Roma (embora sem a adesão formal dos EUA), que instituiu o Tribunal Penal Internacional, em 1998.
O TPI já julgou inimigos dos EUA, como Slobodan Milošević (falecido antes do encerramento do julgamento) e até o momento não processou nenhum líder do chamado “Ocidente”. Mas a movimentação frente aos crimes de guerra de Israel despertou nos grupos dominantes dos EUA a visão de que também o tribunal é um estorvo para os seus interesses. No entanto, o Estatuto de Roma é um fruto da ordem internacional que nasceu como parte da era de projeção de poder dos EUA, período em que foram erguidas instituições que visavam neutralizar o contrapeso imposto pelo bloco socialista, liderado pela URSS.
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(Foto: Matty Stern / U.S. Embassy Jerusalem)
Até os anos 1990, os EUA apegavam-se às instituições multilaterais também como forma de conter o expansionismo socialista, ao mesmo tempo em que consolidavam suas posições no mundo. Após o fim do bloco socialista, os EUA buscaram avançar na agenda institucionalista, atraindo para o seu corpo jurídico a quase totalidade dos países do mundo, e ao mesmo tempo mantendo em funcionamento instituições nascidas da e para a Guerra Fria, como a OTAN, por meio da qual seguiu garantindo sua presença e influência militar numa Europa que iniciava um processo de articulação, via União Europeia, e que poderia vir a contestar a preponderância estadunidense. O TPI surgiu nessa época, momento em que acreditava-se no triunfo da ordem liberal.
No entanto, em nosso século, a ascensão de novas potências econômicas e militares vem acentuando o questionamento da preponderância dos interesses estadunidenses – especialmente no que toca às alianças no âmbito Sul-Sul, herdeiras da tradição contestatória dos não-alinhados, mas com muito mais poder econômico e militar.
Junte-se a isso as crises econômicas sistêmicas que vêm assolando o centro do sistema capitalista, o que inclui diretamente os próprios EUA a partir de 2008, e estão delineadas as dificuldades que vêm provocando, entre os decisores da política externa dos EUA – tanto Democratas quanto Republicanos –, uma descrença no próprio modelo que impulsionaram no passado.
Hoje, o principal questionamento à governança internacional vem dos próprios arquitetos dessa estrutura institucional, os EUA. Os países em ascensão, em especial a China, mas também os outros integrantes do BRICS (e BRICS+), têm reforçado o discurso em defesa da consolidação de uma institucionalidade internacional forte, por meio da qual um equilíbrio de forças poderia ser possível, assim como o estabelecimento de uma era de “governança” comum. O país que atua para implodir esses mecanismos e levar o mundo de volta à lei do mais forte são os EUA. E seu comportamento frente aos crimes de Israel e à crescente condenação do genocídio por parte dos demais países do mundo é apenas uma das manifestações desse fenômeno que parece delinear a orientação da política externa estadunidense dos próximos anos, uma espécie de retorno da política direcionada à América Latina no século XX, o chamado “big stick”. Agora direcionado para além do continente americano.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.