A passividade, e mesmo cordialidade, com que a diplomacia ocidental convivia com as ditaduras árabes evoluiu rapidamente para uma situação nova e altamente volátil, com impactos inesperados.
De um lado, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) envolveu-se em mais uma guerra contra um país árabe. As esperanças de um desenlace rápido e da ruína imediata de Kadafi não se concretizaram, obrigando as potências ocidentais a um envolvimento cada vez maior na crise. Por outro lado, o fluxo de refugiados abala as próprias estruturas da União Europeia, principalmente institutos como o “Espaço de Schengen”. Daí decorre a necessidade de analisar os atuais interesses ocidentais e as revoltas árabes.
As questões estratégicas e securitárias
A manutenção e controle do livre acesso entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Índico através do Canal de Suez – esta via básica do comércio e da segurança regional, reaberta ao tráfego internacional e operada pelo Egito desde os Acordos de Camp David (em 1978) – garante o fluxo de energia para a Europa, as operações de combate contra a ”nova pirataria” (Iêmen, Somália) e as operações de controle e segurança entre a frota americana nos dois mares da região, o Mediterrâneo e o Golfo Pérsico, através do Mar Vermelho.
Da mesma forma, o Egito, até fevereiro de 2011, contrariando a legislação internacional, impedia – para satisfação de Israel – o acesso de naus iranianas ao Mediterrâneo através do Canal. Tal quadro foi alterado, já nos primeiros dias do novo governo no Cairo, com a permissão de navios de guerra iranianos de livre acesso ao Mediterrâneo, aumentando as preocupações de Israel e subvertendo as bases da segurança regional, conforme fora estabelecido nos acordos de paz entre Israel e Egito.
A questão da migração
O controle de imigração para a Europa, em especial para a Itália (líbios, tunisianos), França e Bélgica (tunisianos) Grécia (egípcios e tunisianos) e Inglaterra (egípcios e líbios) é uma das preocupações maiores da União Europeia. Desde o início da crise, os ministros do interior interessados manifestaram-se fortemente apreensivos, em especial o governo italiano, considerando-se “abandonado” pelos demais parceiros comunitários.
A possibilidade de vagas de imigrantes pobres do Maghreb – bem ao contrário dos ricos membros da cleptocracia tunisiana e egípcia assíduos em Roma, Paris, Londres e nas praias espanholas – seria uma tragédia para a União Europeia, colocando em risco o chamado Espaço de Schengen, instituto que garantiria a livre circulação de pessoas no interior da UE. Cabe ressaltar que vários governos conservadores da UE, como Berlusconi na Itália e Sarkozy na França, trataram a migração árabe, desde o inicio de seus mandatos, como um problema securitário da comunidade, associando migrantes com desemprego e criminalidade (o que, neste último caso, não possui qualquer suporte ou comprovação estatística).
Caso as revoltas atinjam a Argélia – já, em fevereiro de 2011, palco de grande mobilização popular que avança em nossos dias, e, em especial, o Marrocos, países como a França e a Espanha seriam diretamente atingidos. O próprio ditador líbio, Muamar Kadafi, utilizou-se do pânico europeu frente aos imigrantes para ameaçar a UE. Em 7 de março de 2011, Kadafi, em entrevista à TV francesa, lembrou aos europeus que seu regime é o responsável pelo bloqueio de vagas de migrantes da paupérrima região do Sahel (Chade, Mali, Níger), que, na ausência de um regime “de ordem”, poderiam invadir a Europa, reforçando a tese de que seu regime é parte vital do sistema de segurança do Mediterrâneo.
Neste momento, em total impasse político e militar, já se contam em um milhão de refugiados líbios – de uma população total não superior a 6,5 milhões – acampados precariamente na Tunísia e Egito ou deslocados internamente. Da mesma forma, milhares de tunisianos, sem maiores expectativas, buscam oportunidades na antiga potência colonial, a França.
A ONU criou uma missão especial para analisar as necessidades e as medidas emergenciais de atendimento a estes refugiados. O papa manifestou-se, no domingo de Páscoa, contra a expulsão dos refugiados. Contudo, Sarkozy, que impeliu a solução militar da questão, mantém-se inarredável na repressão aos migrantes. Para este, trata-se de conquistar os votos da extrema-direita do Fronte Nacional, de Marine Le Pen.
A segurança de Israel
A preocupação com a segurança de Israel foi, no caso dos Estados Unidos, um foco inicial bastante relevante de posicionamento frente a Revolta Árabe, com os anseios populares árabes subordinados às questões securitárias ligadas à aliança Washington-Tel Aviv. A diplomacia israelense pressionou fortemente Washington para manter o apoio a Mubarak e afastar-se de um processo de democratização do Maghreb, chegando a gerar intenso debate entre o posicionamento de Hillary Clinton (e Susan Rice, embaixadora na ONU), do vice-presidente Joe Biden – que chegou a defender a permanência de Mubarak em plena revolta – e do próprio Obama, inclinado a apoiar, sem intervenção militar, a revolta popular.
Somente depois do inevitável desfecho é que Israel, através de seu presidente Shimon Peres – uma voz pregando no deserto! – fez um largo elogio ao movimento popular árabe. Aqui reside uma questão-chave: no atual momento e em face da estagnação do processo de paz na Palestina, qualquer governo democrático, sensível aos sentimentos populares, será crítico (em graus variados) ao Estado de Israel.
O caso da Turquia é um paradigma ainda insuperável: a ascensão ao poder em Ancara, em 2002, do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), islamita conservador e democrático, resultou na quebra da colaboração turco-israelense e no surgimento, para Israel, de uma nova frente de críticas e de graves crises internacionais (culminando no ataque israelense contra a flotilha turca de ajuda aos palestinos em 2010).
Eleições livres e representativas no Egito e na Tunísia (assim como seria na Síria e Jordânia) devem forjar maiorias tão críticas a Israel quanto o AKP na Turquia do premiê Erdogan (vamos lembrar que o ataque de Israel à flotilha humanitária de bandeira turca com destino a Gaza causou um imenso dano a imagem internacional do Estado judeu). Da mesma forma, a cooperação militar entre Istambul e Tel Aviv cessou de imediato, dando muito maior liberdade de ação para os regimes de Damasco e de Teerã (que só não aproveitam melhor a situação em virtude de suas próprias oposições internas).
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De qualquer forma, no médio prazo, as revoltas árabes são um grave risco para Israel. A propaganda política mais comum – “Israel, a única democracia do Oriente Médio” – e muito sensível na Europa e Estados Unidos, irá por água abaixo. Por outro lado, a insistência numa visão de Israel como um acampamento militar cercado por inimigos – o chamado “Espírito de Massada” – será duramente criticada, inclusive internamente. A existência de regimes representativos no Cairo, em Túnis, em Beirute e, quiçá, em Damasco e, num futuro, em Teerã terá um desfecho certo sobre os palestinos. Novas eleições gerais darão, sem dúvida, uma maioria às forças mais moderadas e que buscam uma solução negociada e definitiva. Assim, a direita nacionalista no poder em Tel Aviv ficará cada vez mais isolada e sem programas.
Mais uma vez, a história é irônica: é muito provável que o último alvo da democracia no Mundo Árabe seja a direita israelense.
A questão do petróleo
O Egito e a Tunísia não são, em verdade, grandes produtores de petróleo, sendo sua produção residual em relação aos vizinhos. Contudo, o impacto da revolta egípcia se faz claramente sobre o fluxo de comércio mundial – incluindo aí petróleo – através do Canal de Suez e, ao mesmo tempo, sobre o risco de fechamento da via por generalização de conflitos internos ou antipatia com o Estado de Israel. Estas possibilidades, mesmo remotas, já influíram visivelmente na cotação do barril no início da rebelião popular egípcia.
O efeito dominó do aumento dos preços do petróleo deverá incidir, por sua vez, fortemente sobre commodities agrícolas, impulsionando ainda mais a inflação mundial e gerando “bolhas” especulativas setoriais. Entretanto, o caso da Líbia é bastante diferente – as reservas (comprovadas) líbias de petróleo alcançam 47 bilhões de barris, enquanto as egípcias somam apenas 4,3 bilhões de barris. Sua produção é parte integrante da produção mundial do sistema de cotas da OPEP e a paralisação, mesmo parcial, incidiu já fortemente sobre a cotação do petróleo.
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O destino das revoltas árabes está no reino do petróleo
O aumento da produção da Arábia Saudita e, suplementarmente, do Catar e a Nigéria, para preencher o fornecimento líbio – na casa de 500 até 600 mil barris/dia – foi, desde 27 de fevereiro de 2011, uma medida emergencial para evitar maiores sobressaltos no mercado. Da mesma forma, a notícia de que os Estados Unidos estavam cogitando colocar no mercado suas reservas estratégicas dão conta, em conjunto, do impacto (mesmo psicológico) da crise num momento de fragilidade da economia norte-americana e europeia.
Contudo, o ministro do petróleo do Irã, esperadamente, reagiu irritado à medida saudita e lançou a OPEP numa situação de indecisão. Ao Irã, secundado pela Venezuela, interessa a manutenção dos níveis elevados da cotação. Para ambos – em forte crise econômica e em atrito constante com as potências ocidentais – não interessa aliviar os efeitos inflacionários da crise. Embora os Estados Unidos não sejam grandes compradores na região, suas empresas são grandes operadoras e estão diretamente envolvidas na crise.
O principal prejudicado no caso são as economias europeias, já duramente atingidas pela crise financeira comunitária, pela vaga de migrantes, e agora pelo preço da energia. Caso a crise perdure ou alastre-se para a Argélia – grande exportador de gás natural, com reservas de 59,67 bilhões de metros cúbicos, o que a faz o quarto exportador mundial, mormente para a França e Espanha – a segurança energética global será duramente afetada.
* Professor Convidado da Universidade Técnica de Berlim. Artigo publivado na Carta Maior.
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