A análise da conjuntura política no Brasil deve enfrentar um enigma. A resiliência do bolsonarismo é impressionante, mesmo depois da repercussão da derrota do levante golpista de janeiro de 2023. O cerco aos líderes da extrema-direita, inclusive Jair Bolsonaro, apertou com o avanço das investigações da Polícia Federal. Mas não diminuiu sua autoridade, ou sequer sua capacidade de mobilização de uma base social coesa, como ficou demonstrado na manifestação dos duzentos mil na Paulista em fevereiro.
Quando o desempenho do governo Lula é comparado com o governo Bolsonaro, o desempenho é positivo no Nordeste, empata no Sudeste, mas é negativo no Sul, Centro-Oeste e Norte do país. Considerando a desagregação dos dados das pesquisas, o bolsonarismo concentra maior influência entre os homens, na população que têm entre 30 e 60 anos, aqueles que ganham mais do que dois salários mínimos, além dos evangélicos. Em resumo, o país continua fraturado, essencialmente, como saiu das eleições de 2022, um ano e cinco meses depois.
O paradoxo sugere que a explicação desta rigidez, uma expressão de uma relação social de forças desfavorável que vem desde 2016, não se resume à evolução da economia. A questão é: por quê? O desafio é: o que fazer?
Não há um mistério. São muitos fatores, e não parece ser monocausal. Mas não é simples. Não fossem bastante os escândalos – falsificação da caderneta de vacinação, apropriação das joias – e, sobretudo, a defesa do golpismo, a situação econômica não evoluiu mal. E, no entanto, a extrema-direita mantém posições. Depois de seis meses de estagnação econômica no segundo semestre de 2023, os dados disponíveis sobre os níveis de atividade do primeiro trimestre confirmam crescimento que indica uma elevação de até 2% do PIB para este ano, enquanto a inflação baixa se mantém estável, o desemprego continua em queda abaixo de 7% e a renda média subiu, mesmo com taxas de juros reais entre as cinco maiores do mundo. São todos indicadores positivos, embora pequenos. Mas a aprovação do governo Lula mantém uma lenta, porém, irreversível tendência de queda, por enquanto. Há fatores econômicos incontornáveis: a esquerda perdeu a hegemonia na classe trabalhadora organizada, aqueles que ganham acima de dois salários mínimos. Sem responder aos interesses de classe de, pelo menos, 15 milhões de assalariados com contratos – petroleiros, professores, metalúrgicos, bancários, etc – não é possível reunificar a classe trabalhadora. Só que não é somente a economia: a disputa ideológica ganhou um peso enorme. A aposta de que apenas a redução da miséria será suficiente para isolar o bolsonarismo, ou que se pode confiar no apoio dos líderes da burguesia para 2026, aqueles que tentaram uma terceira via em 2022, são imprudentes.
O fenômeno da resiliência da extrema-direita não é uma peculiaridade brasileira. Mesmo nos EUA a flutuação da economia nos anos pós-pandemia foi, também, apesar das pressões inflacionárias, positiva. O desemprego diminuiu, o salário médio subiu, embora modestamente, mas este contexto não enfraqueceu Trump. Não é, portanto, somente a economia.
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(Foto: Ricardo Stuckert / PR)
A luta política não acontece mais somente nas disputas em espaços institucionais e na mídia, porque escalou em “guerra” ideológica nas redes digitais. No mundo da internet, a extrema-direita mobiliza milhões de ativistas engajados, apaixonados e radicalizados que disputam uma visão de mundo: nacionalismo exaltado, xenofobia, militarização, machismo, racismo, LGBTfobia e fúria anti-ambientalista. No campo da esquerda não temos uma militância com esta mesma disposição de luta. Por quê?
Há duas grandes hipóteses de interpretação, além de outras intermediárias: (a) a primeira é a mais influente, até no PT, e defende que há erros graves na estratégia de comunicação, que não consegue explicar que as iniciativas e “entregas” da gestão são positivas, já que a estratégia do governo Lula está correta – apostar na governabilidade das alianças em Frente Ampla e nas negociações com o Centrão no Congresso Nacional – ainda que muito gradual, permanece a única possível, e é necessário paciência, porque os resultados na vida “material” das massas irão demorar um pouco mais para convencer parcelas ampliadas da população; (b) a segunda defende que só é possível vencer apoiado em mobilização social e enfrentando a luta política e “guerra ideológica” que a extrema-direita conduz todos os dias na redes digitais, portanto, a estratégia atual – sacrificar a disputa para manter a Frente Ampla até 2026, desconhecendo que os aliados do centro podem abandonar Lula em 2026 – está errada para garantir a derrota do neofascismo. E não entusiasma ninguém.
A única forma de vencer a guerra ideológica é fazê-la, porque, convenhamos, o governo não compra briga nenhuma. Acumula derrotas no Congresso Nacional e apanha, todos os dias, surras homéricas nas redes digitais sem responder. Ou seja, o governo deveria sair da inércia e começar a lutar. Defender um giro à esquerda não é apresentar um ultimato: “façam a revolução!”. Lula é uma liderança moderada, o PT é um partido reformista, e o governo é uma coalização. Não há uma situação pré-revolucionária, ao contrário, ela é desfavorável, até reacionária. Um giro para a luta política ideológica significará riscos políticos, porque estamos, neste terreno e neste momento, ainda em posição de inferioridade, não só em função dos algoritmos. Não se pode e não se deve comprar toda e qualquer briga, evidentemente. O governo deveria começar a considerar a necessidade de romper com o Centrão, antes que o Centrão decida romper com o governo. Ou alguém pensa que o Centrão vai apoiar Lula em 2026, se agora em 2024 já está em sua imensa maioria alinhado com a extrema-direita?
Se não quisermos ver o bolsonarismo em condições de vencer as eleições gerais de 2026, não há mais tempo a perder. A extrema-direita não se cala um só dia defendendo, no Rio Grande do Sul, que “o povo só pode contar com o povo”; a legitimidade das chacinas na Baixada Santista que seriam uma “guerra” ao PCC; as escolas cívico-militares que seriam exemplo de respeito e disciplina; o agro que é pop, a gestão da Petrobras nas mãos dos acionistas, a “coragem” do Banco Central de manter os juros altos, o “recato das mulheres” contra as feministas, da “família de bem” em que o pai manda, a degeneração dos pederastas LGBT’s, a “arrogância” das lideranças negras como Vini Jr, que enfrenta os racistas de cabeça erguida, o doutrinamento intelectual “marxista” nas universidades, e por aí vai. Ou seja, defendem o privilégio, a opressão, a violência, a ignorância, despudoradamente. Mas o governo Lula, que devia ser um instrumento de luta e não somente de gestão, não responde. O argumento de que a luta política deveria ser feita pelos movimentos sociais não é um argumento sério. O maior risco é o medo de correr riscos. Os limites do lulismo ameaçam o futuro de toda a esquerda.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.