O meu voo aterrissou em Buenos Aires no sábado, 21 de outubro, logo cedo. A atmosfera estava tão tensa que me parecia um lugar que eu nunca havia visitado antes. O primeiro turno das eleições presidenciais foram realizadas no dia seguinte e a candidatura do libertário de extrema-direita Javier Milei parecia ameaçar o consenso que havia se estabelecido desde a transição democrática de 1983. O candidato estava subindo nas pesquisas, prometendo demolir o Estado de bem-estar social, dolarizar a economia e lançar uma repressão autoritária contra a oposição. Todos sabiam que o resultado das eleições teria implicações para além dos quatro anos seguintes. Quando os resultados foram divulgados, o sentimento de alívio era palpável: Milei obteve 30% dos votos, enquanto o ministro da Economia, Sergio Massa, superou as expectativas com 37%. Agora, os dois candidatos enfrentarão um acirrado segundo turno em meados de novembro. Independentemente de quem ganhar, não haverá retorno ao status quo anterior. O sistema político argentino entrou em uma nova era.
A frustração com o establishment peronista vinha crescendo há algum tempo. Durante o período do kirchnerismo – a presidência de Néstor Kirchner (2003-2007), seguido pelo de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015) –, as perspectivas econômicas do país oscilaram. Houve quase uma década de sólida recuperação, redução da pobreza e melhorias em todos os indicadores sociais, graças a fortes políticas de bem-estar e ao boom mundial de commodities. No entanto, em 2011, iniciou-se um período de estagnação. O lento crescimento econômico, os escândalos de corrupção e o cansaço com o personalismo kirchnerista criaram a tempestade perfeita para as eleições de 2015, quando o sucessor ungido de Kirchner, Daniel Scioli, perdeu para o conservador Mauricio Macri, defensor do livre mercado.
Macri não era um outsider. Tinha sido prefeito de Buenos Aires nos oito anos anteriores, enquanto a sua coalizão, Cambiemos, tinha uma presença significativa no Congresso e governadores em algumas províncias. A sua proeminência aumentou com as eleições de 2015 e cresceu mais ainda com as eleições de meio de mandato de 2017. No poder, Macri eliminou os controles monetários e estabeleceu uma taxa de câmbio flutuante, além de promover a desregulamentação para atrair investidores internacionais. Um novo empréstimo do FMI em 2018 abriu caminho para medidas de austeridade punitivas, que não contribuíram em nada para conter a inflação persistentemente alta da Argentina. Quando o país voltou às urnas em 2019, estava assolado pelo aumento da pobreza e por uma dívida externa esmagadora. Macri foi devidamente chutado do cargo e substituído pelo peronista Alberto Fernández, com Cristina Fernández como sua vice-presidente.
Os kirchneristas – favoráveis a uma ampla redistribuição de renda e menos preocupados com o déficit fiscal e a balança de pagamentos – estavam à esquerda do novo presidente, que se apresentava como um tecnocrata capaz. No entanto, os primeiros não conseguiam reunir o mesmo apoio popular que o presidente e tinham poucos meios para implementar as suas políticas reformistas na ausência de crescimento econômico. A questão para a oposição de direita, agora rebatizada como Juntos por el Cambio, era saber se conseguiriam recuperar o legado de Macri, apresentar uma frente unida e capitalizar as divisões dentro da coalizão governamental. A sorte parecia sorrir para eles, ainda que não para o país, com a pandemia de Covid-19 e a pior seca da história nacional, que fez com que a inflação anual ultrapassasse 100%. A coalizão Juntos por el Cambio consolidou assim sua posição como a principal desafiante do peronismo e fez uma forte campanha nas eleições de meio de mandato de 2021. As suas esperanças para as eleições de 2023 eram grandes.
Poucos previram o que estava por vir. Milei, um autodenominado “anarco-capitalista”, opositor da “ideologia de gênero” e defensor da ditadura argentina, eclodiu na cena política. Depois de ter conduzido a sua coalizão La Libertad Avanza ao Congresso em 2021, começou a ganhar apoio entre legiões de jovens descontentes e eleitores de primeira viagem, com um programa que incluía o fechamento do Banco Central e a privatização dos sistemas de saúde e educação. O seu avanço nas eleições primárias de 2023, onde obteve 30% dos votos, contra 28% do Juntos por el Cambio e 27% do peronista Unión por la Patria, foi um choque. Milei soube aproveitar a raiva contra o governo e explorar as memórias vivas da administração Macri. Ele evidenciou o fato de que nenhuma destas formações eleitorais tinha uma visão hegemônica para a Argentina: o governo em exercício era incapaz de cumprir as suas promessas social-reformistas; a oposição não tinha uma identidade distinta para além do seu ódio ao peronismo. Para muitos eleitores, uma terceira opção era atraente.
Estas marés cambiantes levaram os dois outros principais candidatos, Patricia Bullrich, do Juntos por el Cambio, e Sergio Massa, da Unión por la Patria, a agir. Para o governo, era urgente impedir que Milei minasse o acordo democrático argentino – daí a sua promessa de formar um governo de unidade nacional, reunindo peronistas e não peronistas, após as eleições. As forças kirchneristas no seio das suas fileiras foram marginalizadas ou se conformaram. Massa endureceu a sua retórica econômica de corte nacionalista, sublinhando a importância de defender o trabalho e o desenvolvimento para além dos livre-mercado. Para os macristas, por sua vez, o problema era sobretudo tático, pois um candidato popular de extrema-direita fazia com que parecessem uma imitação fraca. Na tentativa de atrair tanto os eleitores de Milei como o eleitorado centrista, Bullrich fez uma das campanhas políticas mais ineptas da história argentina. Milei, por sua vez, fez um esforço para suavizar algumas das suas posições mais radicais, prometendo implementar políticas de transição para compensar a redução das políticas de bem-estar social. Mas alcançar a moderação não foi uma tarefa fácil. As suas aparições na televisão foram marcadas por ataques maníacos de fúria, como quando acusou Bullrich de “colocar bombas em creches” – uma acusação infundada que pretendia evocar a sua participação no movimento guerrilheiro Montoneros na década de 1970 (ela respondeu processando-o por difamação).
Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA
Comício do candidato peronista Sergio Massa no estádio do Arsenal de Sarandí, no dia 17 de outubro de 2023.
No dia da eleição, a maioria das previsões apontavam que nem Milei nem Massa receberiam votos suficientes para evitar um segundo turno, embora o primeiro estivesse à frente do segundo. No final, Bullrich caiu para 24%; Juan Schiaretti, um dissidente peronista, obteve 7%; e Myriam Bregman, da esquerda trotskista, apenas 3%. No entanto, os dois primeiros colocados viram as suas posições nas pesquisas se inverterem repentinamente. Como explicar a ascensão de Massa? Há vários fatores em jogo. Em primeiro lugar, as medidas pró-cíclicas que implementou enquanto ministro da Economia, que conseguiram aumentar o consumo e a demanda. Algumas delas, como a eliminação dos impostos sobre o rendimento para certos trabalhadores de colarinho branco e executivos, não eram progressivas, mas também não eram impopulares entre os eleitores. Outras, como o congelamento das tarifas dos transportes públicos e a devolução de certos impostos sobre consumo, tentaram compensar aqueles setores mais afetados pela inflação. Em conjunto, o impacto dessas medidas foi reforçar o seu apoio a curto prazo, ao mesmo tempo que aumentava as pressões inflacionárias mais adiante.
Para além disso, parece que o voto de protesto contra o governo, embora poderoso em agosto, despencou quando surgiu a ameaça real de um outsider instável ganhar as eleições. Ex-treinador de sexo tântrico e cantor de uma banda cover dos Rolling Stones, Milei é aberto quanto ao seu estilo de vida “pouco ortodoxo”. Recorre a uma médium para falar com o seu cão morto, Conan – uma criatura que ele clonou por 50 mil dólares, gerando assim outros quatro mastins, cada um deles com o nome de um economista libertário. A sua retórica violenta, o seu negacionismo climático e a sua misoginia descarada fazem com que Trump e Bolsonaro pareçam tímidos. O seu aparelho político é quase inexistente: contratou vários membros da família, incluindo a sua mãe e a sua irmã, que, gracejando, disse que seria a sua “primeira-ama” caso fosse eleito. À medida que foi se tornando mais conhecido pelo eleitorado e que o seu fator de “novidade” foi se esvanecendo, a personalidade relativamente sóbria e convencional de Massa começou a parecer mais atraente. (Houve até rumores de que Massa apoiou secretamente Milei nas primárias, assumindo que ele seria o candidato mais fácil de derrotar – embora nada de concreto tenha surgido para apoiar esta especulação).
Agora, no período entre o primeiro e o segundo turno, está em curso um realinhamento mais amplo. A expectativa de que o Juntos por el Cambio estabeleceria um sistema bipartidário estável, alternando-se no poder com os peronistas, foi fatalmente minada. As tensões entre os principais componentes da aliança, o Propuesta Republicana de Macri e o partido histórico do centro-direita, o Unión Cívica Radical, atingiram um ponto de ruptura. Bullrich e Macri apoiaram Milei, numa tentativa de enterrar o peronismo de uma vez por todas. No entanto, para muitos outros membros da coalizão, que mantêm um compromisso mínimo com os preceitos democráticos e republicanos, esta é uma linha que não se deve cruzar. É possível que haja uma divisão nas próximas semanas.
Quanto aos peronistas, as divisões no seio do governo de Fernández foram atenuadas, pelo menos por agora, devido ao espectro de Milei. Há um otimismo cauteloso de que Massa – que já aumentou o seu número de votos em quase 9% desde as primárias – triunfará nas eleições do próximo mês. Ele está a caminho de monopolizar a maioria dos eleitores da trotskista Bregman e alguns dos do peronista Schiaretti. No entanto, o fator decisivo será a base eleitoral de Bullrich. Diante da escolha entre um peronista e um autoritário de temperamento selvagem, quem é que esses eleitores vão apoiar? O candidato outsider, que se tornou conhecido por se insurgir contra a “casta política” de Bullrich, terá agora de seduzir os seus seguidores. Não se sabe se ele tem o senso estratégico para isso.
O que está claro é a remodelação do sistema político argentino. Durante quase quinze anos, ele foi estruturado pelo antagonismo entre o kirchnerismo e o anti-kirchnerismo. Agora já não é mais assim. O primeiro viu a sua influência diminuir durante o ministério de Massa, que marca um regresso ao peronismo clássico. O segundo, representado pelo Juntos por el Cambio, perdeu apoio popular e foi vítima das suas contradições internas. Nos próximos anos, a Argentina poderá encontrar-se numa situação semelhante à dos Estados Unidos ou do Brasil: de um lado, um bloco reacionário que caminha numa direção cada vez mais antidemocrática; do outro, uma coalizão de centro-esquerda que, devido à diversidade de atores, tem dificuldade em formular um programa coerente. Mesmo que Massa vença o segundo turno, é inegável que a política argentina está se aproximando da direita desde a primeira década do novo século. A forma como Massa governará, e as pressões populares a que está sujeito, determinarão se o país voltará a avançar.
(*) Pablo Pryluka é historiador pela Universidade de Buenos Aires e mestre em História pela Universidade Torcuato Di Tella
(*) Tradução de Raul Chiliani