Foi rolando a barra do Instagram, nesses movimentos bastante vazios que nos tomam muitas vezes alguns bons minutos do dia, que eu vi a imagem insondável de um obituário de jornal, típico, em preto e branco, com a data de nascimento e de morte, de Gal Costa. Pulou assim pra mim, como num espanto revestido pelos solavancos da conexão instável da internet. Segundos atrás era uma receita de bolo que aparecia, depois uma selfie de algum conhecido distante e de repente Gal, a foto em preto e branco, o anúncio fúnebre.
Demorei também alguns segundos para entender, talvez porque minha conexão com a ideia de uma Gal que não está mais viva em carne e osso também seja um tanto instável. Olhei novamente. Cliquei na página do jornal, demorei a acreditar. Fui a um site de pesquisa e escrevi Gal Costa. O buscador já exibiu de imediato o nome, ficou azul a revelar um hábito, a procura que faço de quando em quando: cadê Gal Costa, o que ela anda fazendo? O que ela vai nos apresentar em breve?
Dessa vez o que me tomou não foi a expectativa por um novo trabalho, mas um medo tremendo de ser verdade aquela imagem em preto e branco, um medo tremendo de ver uma enxurrada de notícias, todas escalonadas, me dizendo aquilo que eu não dou conta de saber: Gal se foi nessa manhã de quarta-feira.
Ouvi há alguns dias “Cuidando de Longe”, parceria com Marília Mendonça, que também nos deixou faz mais ou menos um ano. Comentei com alguém sobre a música: o que eu gosto da Gal é que ela grava os antigos e os novos, ela se compatibiliza com a juventude de uma maneira singular, mas sem fazer recusa à beleza das décadas que já passaram.
Sua voz mudou ao longo dos anos, o comum de toda coisa viva que se altera no pacto com o tempo, e nem por isso perdeu as características marcantes, uma certa doçura imantada à precisão furiosa de uma flecha que solenemente nos rasga o peito.
Gal foi vítima das piores críticas quando nos brindou com o disco “Recanto”, seu 30º álbum, lançado em 2011. À época do show, nos jornais fervilharam comentários sobre como os agudos de Gal não estavam mais os mesmos, com quase 70 anos a cantora cometeu o crime de baixar em uma oitava seus sucessos para conseguir atingir as notas mais altas. O tipo de texto que valoriza os aspectos mais caducos da crítica musical brasileira porque faz do artista uma entidade maquinal, asséptica e imutável. Gal, pelo contrário, nos provava ser integralmente humana cantando, dado que os críticos do incessante conservadorismo midiático não estão preparados para captar.
Tive a sorte de vê-la em plena existência sobre o palco do show “Recanto”, na ocasião ela se dirigiu a Caetano Veloso que estava na plateia: “se você está nervoso aí, cara, imagina eu aqui”. Tenho também a sorte de poder ver o vídeo em que canta “Nuvem Negra”, de Djavan, ao lado dele e de Chico Buarque. No primeiro take, Gal se desconcentra numa risada com Chico e a gravação precisa ser interrompida, ela pede desculpas, diz que Chico estava rindo, parecia um menino, e isso a fez querer rir também.
A espontaneidade de Gal, de tão imbricada ao ato estético, me soava como parte essencial de seu projeto artístico: ela se espraiava com seu sorriso brilhante e largo, acentuado pelos batons mais ousados dos anos 80 que todas as feministas queriam copiar, e encantava todos ao redor. O sorriso era uma maneira d’o canto permanecer vibrando mesmo depois de encerrada a última afinadíssima nota.
Gal envelheceu com o sorriso vibrando e não se esquivou do tempo que passa, nos apresentando suas transformações como novos paradigmas musicais, assumiu sem emulações as canções antigas, deu-lhes forma a partir de um corpo que lhes era contemporâneo. Às novas, imprimiu o claro-escuro da maturidade vocal, articulando-se ao discurso do pop e da música eletrônica sem, no entanto, criar hierarquias. Sua assinatura estética é a diversidade e a abertura para horizontes de reinvenção dentro do mercado musical.
Marcos Hermes / Divulgação
Uma das maiores vozes do Brasil, Gal faleceu nesta quarta-feira (09/11), aos 77 anos
Para além do mercado, diga-se de passagem, Gal frequentemente se traduziu como uma criatura constituída de sonoridades desde a barriga de sua mãe, dona Mariah. Em sua jornada histórica temos música por todos os lados, da jovem que acanhadamente ingressa na indústria fonográfica brasileira até a ruptura Tropicalista, do regresso à Bossa Nova à música comercial global dos fim dos anos 80 e nos processos experimentais de seu trabalho no terceiro milênio.
A belíssima composição “Errática” de Caetano gravada por Gal no disco “O Sorriso do Gato de Alice”, lançado em 1994, nos dá as pistas sobre a síntese Gal/Música: “nesta melodia em que me perco/ quem sabe talvez um dia/ ainda te encontre minha musa/ confusa(…)”.
Aqui a busca pela inspiração criativa funde-se à utopia amorosa. A musa fugidia que se persegue no ato poético é a música ou a mulher amada? Talvez seja os dois em Gal que era uma só ao mesmo tempo em que era tantas preciosidades dentro da canção brasileira: era “Legal”, “Tropical”, “Fa-tal”, era “Profana”, “Água Viva”, era a “Lua de Mel Como o Diabo Gosta”, foi um “Domingo” inesquecível e agora também é uma quarta-feira de cinzas em um país que tenta a todo custo voltar a mover-se em dignidade.
Aqui escrevo essas palavras do meu lugar sagrado de admiradora de Gal, uma fã que um dia chegou perto mas quis fugir, correr daquele camarim onde havia entrado sorrateiramente depois de assistir ao show. Ali, a intenção dessa fã com seus amigos era conseguir um autógrafo, uma foto, uma lembrança.
Tudo foi feito com tanta coragem, eu me sentia em brasa quando o segurança permitiu que nós subíssemos as escadas dos bastidores. Ficamos em um canto da enorme sala com sofás e uma mesa repleta de comidas, tinham outras pessoas, pessoas famosas, e nós ali, quatro jovens anônimos em um estado entre a timidez e a excitação. De repente, Gal Costa surge da porta do fundo que dá para o palco, ela traja o elegante vestido preto da apresentação, seus cabelos negros armados magnetizavam o nosso olhar. Eu começo a tremer, me embriago sem me embriagar, me debato, intranquila, me arrebento, desisto: não consigo estar tão perto.
Saio, vou embora com o disco que eu queria que ela assinasse sem a assinatura. Caminho pela avenida um pouco sem ar, penso na chance perdida que estranhamente não me causa tristeza e sim uma imensa e contraditória alegria.
Essa é minha história de fã com Gal, a história de um arrebatamento insustentável que se dá quando posso vê-la adentrar o espaço, espalhar-se pela atmosfera, preencher toda a mínima fissura e fresta, assim como faz o seu cantar. Estar tão perto da fonte da beleza é o risco do êxtase ou do terror?
Ver Gal Costa tão de perto me pareceu uma invasão e eu não queria invadir, queria apenas dizer que eu a amava, que ela havia formado a pessoa que eu era, a mulher que eu era, de alguma maneira, sim, ela havia me formado. Então, sim, eu disse: eu te amo, Gal, mas disse em silêncio, um silêncio entrecortado apenas pelo sussurro da lembrança do show, das melodias, da emoção. A partir daquela noite eu percebi que a voz de Gal estava em mim para sempre, qual uma ponte sensível que me ajuda a escutar as tantas canções do mundo.
Sua voz me acompanha naquela avenida enquanto tento recuperar o ar. Sua voz me acompanha agora enquanto tento lidar com a notícia da morte. Sua voz me acompanhará para sempre, Gal, em todo o silêncio, em todo o ruído, em todo carnaval, em toda dança, em todo compasso ternário das horas que nos lembra a todo instante que, apesar das imagens em preto e branco, a vida continua.