“O país ficou polarizado, dividido e, independentemente desse resultado retumbante, o processo constitucional não conseguiu canalizar as esperanças de ter uma nova Constituição escrita para todos”, disse o presidente Gabriel Boric. O processo constitucional chileno, lançado em novembro de 2019 em meio à revolta popular, chegou a um final frustrante e deixa a percepção de um longo período cheio de obstáculos e descontinuidades.
Os chilenos rejeitaram amplamente a proposta de constituição elaborada por um conselho de neoliberais conservadores, que o próprio eleitorado havia eleito em maio passado. 55,7% do eleitorado votou contra uma proposta de Constituição que despojava os cidadãos de seus direitos e consolidava os privilégios dos investidores e das elites. Não houve triunfo aqui, mas houve uma sensação de alívio.
Embora a constituição de 1980 ainda esteja em vigor e permaneça assim por um período indefinido, as inúmeras reformas aplicadas a partir do governo do ex-presidente Ricardo Lagos fazem dela um texto familiar, mas a base de todas as desigualdades e injustiças. Como disse a ex-presidente Michelle Bachelet na época, era necessário escolher entre o ruim e o pior. As demandas levantadas em 2019 continuam presentes.
Um processo circular para chegar ao ponto de partida. Quatro anos intensos que começaram com a revolta, as dezenas de pessoas mortas e milhares mutiladas, uma pandemia com mais de 60 mil mortes e 4,5 milhões de casos, uma queda no PIB de 5,8% em 2020 e subsequentes taxas de crescimento mínimas e inflação de dois dígitos a partir de 2021.
Juntamente com esse catálogo de calamidades, à agenda pública somam-se o aumento da criminalidade, a consolidação do crime organizado e a chegada de centenas de milhares de migrantes desempregados, que atualmente somam mais de 1,4 milhão de pessoas. Isso representa 7,5% da população do país.
Durante esses anos, as distorções estruturais tão típicas dos países latino-americanos se cristalizaram. Surgiu uma direita altiva e fundamentalista que não se constrangeu em propor uma constituição que apagava direitos, especialmente aqueles em favor das mulheres conquistados pelo movimento feminista, e consolidava as desigualdades. É a mesma direita, também com maioria no Senado e na Câmara dos Deputados, que bloqueou as reformas tributária e previdenciária, os dois eixos do programa de governo de Gabriel Boric, bem como outras reformas na saúde e na educação.
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O presidente chileno Gabriel Boric durante seu discurso após vitória em 2021
Toda a direita apoiou a campanha a favor da proposta constitucional. Do Partido Republicano de José Antonio Kast, à direita tradicional do Chile Vamos, passando por alguns grupos dissidentes da crepuscular Democracia Cristã, além do favoritismo aberto da grande mídia.
Mas o maior e mais entusiasmado apoio veio das elites e dos patrões, que seriam os maiores beneficiários da proposta. Dados do Serviço Eleitoral revelaram que 98% das contribuições financeiras para as campanhas foram direcionadas para o voto “A Favor”.
No dia seguinte, interpretações variadas tomaram conta da mídia. O progressismo interpretou o voto como uma rejeição aos extremos, enquanto a direita o interpretou como um apoio à Constituição atual, o status quo neoliberal. A presidente do Partido Socialista, Paulina Vodanovic, descreveu o resultado como uma derrota: “O Chile perdeu, porque tivemos a oportunidade de ter uma boa constituição escrita na democracia e não a aproveitamos”.
Mas ela atribuiu o fracasso à direita e, especialmente, ao Partido Republicano: “Foram eles que perderam ao querer impor seus termos, acho que eles têm que fazer um mea culpa pela farra […] Não havia possibilidade de chegar a acordos, o texto era ruim, eles colocaram um programa de governo em uma Constituição”.
O ex-ministro do governo da Concertación, Francisco Vidal, fez uma análise otimista em uma coluna publicada pelo jornal El Mercurio. “Esse triunfo, sendo parte do governo, ocorreu em um contexto de crescimento econômico zero este ano, com desemprego de 8,9%, com inflação reduzida, mas que terminará o ano em 4,5%, com uma percepção de insegurança cidadã sentida por mais de 90% dos chilenos. Apesar de tudo isso, as forças de esquerda e centro-esquerda conseguiram triunfar”.
O economista e membro do Partido Socialista Gonzalo Martner também prefere ver o resultado como um apoio às ideias progressistas. Em um post na rede X, ele escreveu: “Agora é hora de expandir as energias na segunda metade do governo de Gabriel Boric e realizar as reformas da saúde, da previdência e dos impostos e pensões, o que depende dele, de sua coalizão e da mobilização dos cidadãos contra o bloqueio parlamentar e midiático da oposição”.
Em março, o governo chegará à metade de seu mandato sem ter conseguido levar adiante as reformas prometidas. Essa eleição pode ser interpretada como um apoio ao presidente Boric, bem como uma rejeição à perda de direitos sociais e às posições mais conservadoras da direita. Mas nem na noite de domingo nem na segunda-feira esse setor mostrou sinais de abertura para negociações. Não só não aceitou o resultado como uma derrota, como também pediu abertamente a manutenção de um bloqueio legislativo aos projetos do governo.
Como se nada tivesse acontecido, o presidente do Senado, o pinochetista Juan Antonio Coloma, está impondo a agenda do empresariado e das elites a partir dessa Câmara. “De agora em diante, temos que nos encarregar das questões urgentes de segurança, para as quais promovemos uma agenda neste Congresso e medidas para que o Chile volte a crescer”. Nenhuma palavra sobre as demandas por melhores pensões, saúde e educação. Nem uma palavra sobre a reforma tributária.
(*) Paul Walder é jornalista e escritor chileno, graduado pela Universidade Autônoma de Barcelona, colaborador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).
(*) Tradução de Pedro Marin