Para qualquer um que busque analisar o mundo, é coisa muito útil ter uma consciência algo profunda da realidade do próprio país, e ter um conhecimento amplo, ainda que com pouco aprofundamento, sobre países diversos, de regiões e tradições distintas. Pesar bem estes fatos antes de apontar dedos para este ou aquele governo é um bom antídoto contra a desonestidade e a injustiça.
Na Terra há mais de 190 países, onde vivem dezenas de milhares de povos, com milhares de religiões, culturas, formas de organização e histórias. Mas há quem busque sintetizar essa enormidade de formações sociais em dois conceitos rijos: ou os regimes políticos sob os quais os homens vivem são ditaduras, ou são democracias. Não é uma opção de menor importância: trata-se de medir a experiência política e a vida cotidiana dos povos que habitam nos 149 mil km² de terras emersas desse mundo em código binário, inflexível e absoluto.
Em uma entrevista recente à Rádio Gaúcha, ao tratar da Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva expôs um modo de ver as coisas diferente desse binarismo conceitual: “A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de democracia, porque a democracia que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”. Foi declaração suficiente para que os paladinos liberais na imprensa, cerrando fileiras com a extrema-direita nativa (não é a primeira vez), colocassem seus fraques e adotassem a postura fidalga de costume, condenando a fala do presidente como um cruzado condena o pecador.
Foram muitas as argumentações (embora bem fracos os argumentos) nesta onda condenatória que mais se vale da construção de aparências do que da razão, mas todas partiam, por óbvio, do princípio de que não há nada de relativo na democracia. Assim, talvez valha avaliar alguns comportamentos presentes em países que esses acusadores não duvidam constituírem democracias absolutas.
A França, exportadora de um certo padrão civilizacional que muito excita os higiênicos articulistas no Brasil, viveu há pouco uma onda de revolta após a morte de um jovem de origem argelina, Nahel M., nas mãos da polícia. Dezenas de milhares de policiais foram postos nas ruas para reprimir as revoltas, levando à prisão quase 3 mil pessoas até o momento em que este artigo é escrito. Em Paris, uma manifestação no último sábado (8) chegou a ser proibida, pelo “risco de perturbação da ordem pública”. Estes atos ocorreram meses após o governo francês ter usado o artigo 49.3 da Constituição para passar uma reforma da previdência sem que ela fosse votada na Câmara dos Deputados do país, assim que se tornou evidente que a matéria lá encontraria dificuldades. A reforma vinha tendo uma dura oposição nas ruas por parte dos trabalhadores, o que também levou o governo a adotar as armas para fazer calar o povo num tema tão sensível quanto o tempo que dedicará ao trabalho até poder morrer em paz. No final do mês passado, em junho, o governo francês baniu o grupo de ativistas climáticos Les Soulevements de la Terre (LST), sob o argumento de que seus atos ameaçavam a segurança pública e acusando o grupo de “ecoterrorismo”. Diversas organizações ligadas ao meio-ambiente, ONGs de direitos humanos e partidos protestaram a proibição do grupo. A França é uma democracia absoluta?
A Espanha, outro exemplo democrático na tinta fina de nossos comentadores liberais (embora seja uma monarquia parlamentarista), promoveu um massacre em junho de 2021 contra imigrantes que tentavam entrar no país a partir do Marrocos, levando à morte ao menos 37 deles. Em 2017, quando um referendo realizado na Catalunha decidiu pela independência da região, a Suprema Corte do país considerou a votação ilegal, argumentando que ela violava a Constituição espanhola. Evocando o artigo 155 da Constituição, o Senado espanhol dissolveu o governo e o Parlamento catalães. Depois, o Estado prendeu nove pessoas (entre parlamentares, ministros e ativistas catalães) por “sedição”, com penas variando entre 9 e 13 anos. Após mais de três anos presos, eles foram perdoados. A declaração do então primeiro-ministro Pedro Sánchez sobre o perdão é bastante reveladora dos princípios democráticos formais que nossos articulistas consideram absolutos: “ele [Sanchéz] disse que o governo não exige que os perdoados abandonem suas ideias políticas, ressaltando que eles foram condenados por suas ações, e não suas crenças”. Cabe lembrar também que o Estado espanhol tem avançado na perseguição a artistas e ativistas sob as alegações de “glorificação ao terrorismo” e “humilhação das vítimas do terrorismo”. O caso do rapper comunista Pablo Hasél, condenado a nove meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 30 mil euros por publicar tuítes e uma de suas músicas no YouTube que, para o Estado espanhol, “enalteciam o terrorismo” e “injuriavam e caluniavam a monarquia espanhola e as instituições do Estado”, é só um entre muitos: de acordo com relatório da Anistia Internacional, pelo menos 119 pessoas foram condenadas na Espanha sob essas alegações entre 2011 e 2017. “A maior parte das condenações se relacionam a declarações entendidas como ‘glorificadoras’ das ações de grupos armados domésticos como o ETA (Pátria Basca e Liberdade) e o GRAPO (Grupos de Resistência Antifascista Primeiro de Outubro)”, descreve o relatório da Anistia Internacional. Uma parte considerável delas se referem a declarações feitas sobre o assassinato de Luis Carrero Blanco, primeiro-ministro da ditadura franquista morto em Madrid em 20 de dezembro de 1973 numa explosão realizada por militantes do ETA. São casos como o do advogado Arkaitz Terrón, que tuítou que “no dia que o ETA o explodiu muitas garrafas foram abertas”, do rapper César Strawberry, condenado a um ano de prisão por se perguntar “quantos mais deveriam acompanhar o voo de Carrero Blanco?” e da estudante de 21 anos Cassandra Vera, por publicar memes e piadas sobre a morte do primeiro-ministro franquista. Assim são as democracias absolutas?
Para ficar na Europa Ocidental, poderia mencionar ainda a Alemanha, país que mantém uma rígida legislação anticomunista, a Inglaterra, que tem servido de masmorra para o jornalista Julian Assange, a Itália, que tem criminalizado ONGs e ativistas que salvam a vida de migrantes no Mar Mediterrâneo, e muitos outros. Mas é hora de passar às Américas, especialmente aos Estados Unidos, a “maior democracia do mundo”.
(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Cerimônia de chegada do Presidente da República Bolivariana da Venezuela, Nicolás Maduro, por ocasião de sua visita oficial ao Brasil.
Neste caso seria possível começar pelo estranho sistema eleitoral norte-americano, no qual quem vence não necessariamente é aquele que tem a maioria dos votos; sistema que é assentado num bipartidarismo de facto, e que criou uma indústria eleitoral bilionária para influenciar a escolha de líderes (nas eleições de 2020, ela movimentou 14 bilhões de dólares – o filme “Irresistível”, de Jon Stewart, é uma caricatura decente de como o lobby, o marketing e o dinheiro corrompem o sistema norte-americano). Poderia ainda mencionar algo que cala fundo na alma dos Estados Unidos, o racismo, lembrando da perseguição estatal contra organizações como o Partido dos Panteras Negras (com ex-membros ainda exilados, como Assata Shakur, ou presos, como Mumia Abu-Jamal); falar de como os 1,84 milhões de presos no País não têm direito ao voto (uma quantidade desproporcional deles sendo negros), e como muitos ex-sentenciados seguem impedidos de votar mesmo tendo cumprido suas sentenças (2% da população votante dos EUA – aqui, também, com uma desproporcionalidade da população negra). Mas bastará olhar à política externa norte-americana, com suas invasões (Afeganistão, Iêmen, Iraque, Líbia, Síria – para ficar só neste século), apoio a golpes de Estado (Venezuela, 2002; Haiti, 2004; Honduras, 2009; Paraguai, 2012; Bolívia, 2019 – para se limitar à nossa região e aos casos em que há evidências irrefutáveis), e do uso político de sua presença militar e do uso militar de sua moeda e mercado por meio de sanções (o que engloba, fundamentalmente, todo o Planeta). A pergunta que nossos liberais não ousam repetir a si próprios: pode um país ser considerado uma democracia – ainda mais, uma democracia absoluta! – quando, fora das suas fronteiras, age da forma mais autocrática já vista na história humana? Pode haver uma democracia num território, assentada no domínio de outros lugares? Pode o senhor falar verdadeiramente em liberdade enquanto mantém escravos? Enfim: é certo que os norte-americanos, bem ou mal, elegem seus líderes; mas quem elegeu os Estados Unidos senhor do Planeta Terra?
Por fim, cabe nos aproximar mais das fronteiras do Brasil e da Venezuela, para que fique claro que a seletividade de nossos liberais não é questão de miopia, de visão curta, mas sim de desonestidade.
A Bolívia em 2019 foi alvo de um golpe que uniu organizações civis de extrema-direita, congressistas fundamentalistas e militares que, sob o argumento de fraude eleitoral – e com o apoio da comunidade internacional, particularmente da OEA – derrubaram o presidente legitimamente eleito logo após as eleições. O estratagema, bastante similar a alguns planos golpistas esquadrinhados no Brasil em torno das urnas eletrônicas, não só não foi considerado pelos grandes meios como um golpe, como o governo que dele nasceu, liderado por Jeanine Añez, tampouco foi considerado uma ditadura.
A Colômbia é, há anos, o país que mais mata lideranças sociais e defensores de Direitos Humanos na América Latina. Nação fundada no sangue das guerras entre liberais conservadores – como García Márquez bem retratou em sua obra –, a Colômbia fundamentalmente vive sua atual guerra civil desde o assassinato do candidato liberal à presidência, Jorge Eliécer Gaitán, em 1948. Nos anos 1980, com uma primeira tentativa de paz entre o governo colombiano e as FARC-EP, formou-se o partido Unión Patriótica. Mas centenas de seus militantes, incluindo várias de suas principais lideranças, seriam assassinados nos anos seguintes, incluindo Jaime Pardo Real, candidato presidencial da sigla em 1986, assassinado no ano seguinte. Dois anos depois, em 1989, outro candidato presidencial, Luis Carlos Galán, também seria assassinado. A Colômbia é o laboratório do esquema paramilitar que, sob o nome de “milícias”, tanto alarde causou no Brasil durante o governo Bolsonaro. Apesar de tudo isso, creio que o leitor não se recordará de ler em um jornal brasileiro qualquer os termos “ditadura” ou “regime” para descrever a Colômbia – bem, talvez agora que o país tem o primeiro presidente de esquerda de sua história essa inovação chegue às manchetes.
Não precisamos edificar nossos argumentos somente em fatos do passado (ainda que do brevíssimo passado): neste exato momento, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, leva adiante uma guerra contra as gangues que, segundo organizações de direitos humanos, “trouxe à tona inúmeros casos de tortura, detenção arbitrária, desaparecimentos forçados de curta duração e outros maus-tratos.” A popular guerra de Bukele contra as pandillas tem possibilitado que o partido do presidente prorrogue indefinidamente o estado de exceção, em vigor no país há mais de um ano. Além de conceder poderes extraordinários a Bukele, a medida restringe direitos civis fundamentais como liberdade de reunião e associação, e tem servido para que o presidente persiga juízes que ousem pôr pedras em seu caminho. Já no Peru, Dina Boluarte segue no governo, após a queda e prisão do presidente Pedro Castillo, por meio da repressão às bases que a elegeram e uma aliança com seus inimigos históricos. A Bolívia de Añez e a Colômbia uribista constituem democracias absolutas? Por que as ditaduras no Peru e em El Salvador não merecem o mesmo interesse que a Venezuela recebe de nossos comentadores?
Enquanto nossos liberais acusarão este tipo de avaliação como um exercício de “relativização”, selecionam, à sua conveniência, os fatos que põem ou não em sua balança. É melhor ser flexível na interpretação que fazemos dos fatos ou já na sua triagem?
Se poderia acusar nosso método como demasiado cauteloso nas conclusões; mas não é o método destes nossos inimigos o de se refugiarem nas afirmativas grandiloquentes sobre países escolhidos a dedo, por um lado, e, por outro, no silêncio profundo assentado em fatos descartados de princípio, quando se tratam de outras nações? A demonstração máxima desta seletividade é que nossos jornais façam comparações entre Lula e Geisel. “Lula ainda emulou uma declaração do general Ernesto Geisel, penúltimo governante da ditadura militar brasileira, ao afirmar que ‘o conceito de democracia é relativo’”, disse a Folha de S. Paulo em editorial. Trata-se de um jornal que deu apoio à ditadura militar comparando um operário perseguido pelo regime a um de seus líderes. Esta é a régua absoluta de nossos liberais: toda comparação é permitida, as condenações mais estrepitosas são proclamáveis, mesmo que, para tanto, certos fatos graves sejam reduzidos ao mais profundo silêncio.
“Ao contrário dos teólogos, os médicos só admitem como verdade o que podem explicar, e fazem da sua inteligência a medida das possibilidades”, escreveu Rousseau em suas Confissões, lembrando de uma moléstia sofrida na juventude que um certo doutor se negara a tratar como doença. Assim fazem nossos liberais: partem do princípio de que determinadas sociedades são inerentemente democráticas, e ignoram todos aqueles sintomas que dizem o contrário, enquanto apontam mil dedos aos países que, de princípio, consideram ditatoriais: buscam impôr sua medida como absoluta, dissimulando o fato de que esta sua própria medida rejeita a análise de todo objeto que possa colocá-la em xeque. Seu procedimento é absoluto, de fato – o que, ainda assim, não é suficiente para tornar absolutas as suas democracias.
(*) Pedro Marin é editor-chefe da Revista Opera e editor de Opinião de OperaMundi. É autor de “Aproximações Sucessivas – o Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil.”