À medida que as inclinações maximalistas do Estado israelense se materializam em milhares de mortos, milhões de deslocados internos e centenas de toneladas de ruínas em Gaza, os efeitos da campanha midiático-sentimental maciça à qual todos estivemos expostos após os ataques do Hamas no dia 7 de outubro começam a desvanecer.
Os apoiadores mais convictos do Estado de Israel, em compensação, aumentam o tom da sua retórica, sem maiores efeitos; enquanto os mais acovardados e cínicos, inclusive entre nós, procuram mil e um pretextos, propostas e desculpas para, mais do que lavar as mãos, abster-se da verdade.
Nesta operação, que toma formas variadas (da defesa de um dito “direito à defesa” à condenação exclusiva do premiê extremista Benjamin Netanyahu, passando pelo balbucio eterno sobre a necessidade de “reviver Oslo e a solução de dois Estados”) é fundamental que se difunda a confusão sobre o que o colonialismo implica.
O colonialismo certamente é violento, como as manchetes mais frescas e a História mais longínqua atestam. Mas os bombardeios em Gaza são só uma das faces da violência colonial cuja característica primordial é a negação da soberania ao colonizado, ou seja: a proibição de que o povo palestino possa, como comunidade, decidir seu futuro e efetivar sua decisão. Os que, em meio ao sangue, reivindicam a “paz acima de tudo”, falando de dois monstros siameses – Netanyahu e o Hamas – ou evocando os celestiais “dois Estados”, só podem fazê-lo ignorando que os palestinos não têm nem o direito nem o poder para efetivar as deliberações sobre seu próprio destino, e que a existência e a manutenção do Estado israelense – não do atual governo – dependem desta negação tão fundamental.
Filtrando a decisão
Cinicamente, dizem que “a guerra há de ser substituída pela política”, que o diálogo deve ser aberto, que um apertar de mãos deve tomar o lugar do apertar de gatilhos. Quando não escondem que as mais graves concessões por parte dos palestinos foram traídas historicamente por Israel, adocicam o fato lembrando da morte de Ytzhak Rabin, um dos pais do Acordo de Oslo, pelas mãos de um militante judeu de extrema-direita – daí se originaria o enterro da “solução de dois Estados”. Seguindo a lógica, argumentam que uma solução para o conflito passa pela negociação entre os palestinos e os seguidores de Rabin, que devem derrotar o atual governo extremista de Netanyahu.
Mas se os israelenses progressistas, beneficiários das terras palestinas, podem lutar contra seu governo, podem protestar – ainda que sob coerção ou repressão –, podem votar e ser votados para dirigir a máquina israelense, o que podem os palestinos? Mesmo partindo do pressuposto de que os trabalhistas seriam melhores interlocutores do que a extrema-direita israelense, cabe perguntar: pode o povo de Gaza influir sobre a política israelense, senão pelas armas? Se é verdade que não pode, é também verdade que uma outra muralha se ergue entre o colonizador – ainda que “crítico” do seu próprio projeto – e o colonizado: o fato de que o primeiro, tendo direito e meios para alterar os rumos de seu Estado colonial, não é alvo dele, enquanto o segundo, mesmo não tendo tais direitos e meios, continuamente o é.
Parece óbvia a conclusão de que apelar a um “frente-amplismo” com o progressismo sionista em detrimento do reconhecimento do direito à resistência palestino é dizer, simplesmente, que o povo de Gaza deve aguardar sob os escombros até que uma comunidade que se beneficia de seu território decida de boa vontade eleger líderes supostamente dispostos à negociação. É dizer, sem lançar bombas ou discursos extremistas, que a vontade dos palestinos de fato deve estar submetida ao filtro e à temporalidade política israelenses. E se, afinal, esse filtro preferir seguir destruindo hospitais… Bom, que os bebês nas incubadoras tenham paciência até que os israelenses de esquerda vençam eleições!
Israel Defense Forces / Flickr
Tropas israelenses desembarcam de helicóptero durante a Conferência Internacional de Inovação Operacional, em setembro de 2022
Sem soberania, sem paz
A repetição de que “é necessário reviver Oslo” e “retomar a solução de dois Estados” não parte de pressuposto diferente, nem de argumentação menos cínica.
Uma “solução de dois Estados” que de fato seja duradoura dependeria do direito dos palestinos a defender o território de seu novo Estado – isto é, o direito a Forças Armadas nacionais independentes. Sem isso, o destino do Estado e do povo palestino ficaria mais uma vez à mercê das mudanças de turno de Israel, sobre as quais, como vimos, o povo palestino não tem meios para influir, nem teria com dois Estados.
Os cínicos que falam em “retornar a Oslo” nunca se pronunciam sobre esse ponto central, precisamente por saberem que o estabelecimento de Forças Armadas palestinas em um território palestino soberano e livre da presença militar israelense retiraria de Israel, seja em governos trabalhistas ou de extrema-direita, a condição básica para a manutenção do status quo atual; ou seja, a situação de absoluta supremacia militar sobre os palestinos, que permite aos israelenses ora bombardear Gaza, ora estabelecer acordos que não serão cumpridos.
Com o estabelecimento de Forças Armadas palestinas, poderíamos ter paz, caso nenhum dos lados se dispusesse a quebrar o pacto; ou poderíamos ter conflitos ainda maiores, caso qualquer um dos lados se dispusesse a quebrar o pacto. É precisamente por manter somente com Israel a possibilidade de quebrar os pactos, precisamente para negar aos palestinos a capacidade de efetivar decisões que sejam contrárias ao domínio israelense, precisamente por impossibilitar que os palestinos tenham o mesmo direito à defesa que Israel pretende legitimar para si, que a fórmula “dois Estados sem Forças Armadas palestinas” é defendida pelos cínicos (no passado, Netanyahu também dizia claramente que “não se pode esperar que concordemos com um Estado palestino sem ter certeza de que será desmilitarizado”); porque ela é inócua, manteria a soberania palestina controlada e permitiria a manutenção da situação colonial e seu eventual avanço, assim que o governo de turno de Israel decidisse por tanto. Mais do que exigir que os palestinos sejam pacientes e esperem até que os progressistas israelenses vençam Netanyahu, os cínicos defendem que, quando os pactos finalmente renascerem das cinzas, somente Israel tenha força para ser seu guardião ou violador.
Não há soberania para Israel sem a negação da soberania palestina; nem há garantia de segurança para Israel sem a negação da segurança palestina. É essa situação de absoluto desequilíbrio, de absoluta negação de direitos e de meios para efetivá-los, que Israel “defende” hoje em Gaza, legitimando-a como “direito à defesa”; e é precisamente esta situação que os cínicos e covardes buscam sustentar, sussurrando soluções que manteriam a situação inalterada: direito à decisão e meios para Israel, submissão absoluta para os palestinos. Em uma palavra, colonialismo.
Enquanto a soberania e a segurança de israelenses e palestinos for divisível, as armas as seguirão disputando, e não haverá paz.