Em “Calibã e a Bruxa”, de Silvia Federici, há um conjunto de críticas ao pensamento de Michel Foucault. Uma delas me parece bastante pertinente quando diz respeito à apropriação feita pelo autor de saberes desenvolvidos pelo movimento feminista sem, no entanto, localizar propriamente as referências.
Foucault admitia, seja como discussão sobre o que significa ser um autor ou como forma de escapar a um certo patrulhamento ideológico, que nem sempre citava a produção e os autores dos quais partia para elaborar esta ou aquela noção, hipótese ou tese.
No entanto, há que se considerar que uma coisa é esconder uma referência a Marx, um cânone, um autor reconhecido em diversos campos do saber, e outra coisa é a omissão de um conjunto de saberes sujeitados, para usar uma noção do próprio Foucault. A experiência das mulheres na produção do conhecimento demanda dos parceiros, interlocutores, inclusive dos antagonistas, um nome próprio. Até hoje é assim. Não é uma questão de metodologia científica apenas. É um problema ético.
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No entanto, outras críticas de Federici a Foucault me parecem equivocadas.
Quando a autora diz que a preocupação de Foucault com o caráter produtivo das técnicas de poder sobre o corpo praticamente descarta qualquer crítica às relações de poder, penso que é exatamente o oposto, ainda mais nos dias de hoje.
O caráter produtivo das relações de poder nada tem a ver com um juízo de valor sobre a produtividade. Produtivo, em Foucault, é o que autoriza, faz, gera, mobiliza. Produtivo é o contrário de proibitivo, sem que um ou outro seja “bom” ou “ruim”.
Apenas para ficarmos no campo da crítica ao pensamento foucaultiano, podemos encontrar na produção recente do filósofo Byung-Chul Han boas razões para questionar Federici. Han aponta para a superação das sociedades disciplinares por um regime de “liberdade coercitiva” ou “livre coerção” em que padecemos não mais do “dever”, mas de tudo “poder”. Estamos, segundo o autor, diante de um imperativo de produtividade incessante que conduz à auto-exploração e, por conseguinte, ao esgotamento.
Então, se Foucault esteve intrigado com o caráter produtivo das relações de poder, talvez seja porque antecipava novas dinâmicas que apenas começavam a dar sinais de emergência enquanto ele escrevia. Mais do que isso, sua insistência na dimensão produtiva do poder é justamente o contrário da impossibilidade de crítica e está aí o pensamento de Byung-Chul Han como exemplo não apenas da possibilidade, mas da pertinência desta crítica.
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Outras críticas de Federici a Foucault me parecem equivocadas
A outra divergência de Federici em relação a Foucault que considero descabida é ainda mais delicada. A autora rejeita “a cumplicidade e a inversão de papéis (…) entre vítimas e perseguidores”, dado o caráter fatal da repressão que se abateu sobre as mulheres durante a Inquisição.
Eu entendo a preocupação de Federici em destacar a preponderância da repressão sobre os corpos das mulheres no período de acumulação primitiva do capital ao invés de se ocupar de qualquer dimensão produtiva. Dentre outras coisas, é uma afirmação política da mais alta importância.
Ao mesmo tempo, se tomo a produção do Ronaldo Vainfas sobre a Inquisição no Brasil Colônia, por exemplo, não consigo afastar o que, a bem da verdade, sequer é uma sacada muito original de Foucault, pelo menos para quem leu La Boétie.
Como demonstra Vainfas, nos nossos tempos de colônia, o Santo Ofício não deixou de receber as queixas e pedidos de intervenção de mulheres, por exemplo, para que fossem julgados seus maridos “sodomitas”, de maneira que se o principal vetor de força da Inquisição era, de fato, a repressão sobre os corpos das mulheres, isso não quer dizer que de maneira periférica, porém bastante crível porque documentada, as principais e indiscutíveis vítimas históricas do Santo Ofício não tenham também mobilizado o Tribunal (ou seja, produzido algo a partir dali; “produzido” a partir de uma condição que não é de mero objeto, mas também de sujeito).
Enfim, existem muitas outras coisas que se pode discutir na interseção e nas diferenças entre Federici e Foucault e que são apresentadas em 'Calibã e a Bruxa'. Estas são apenas algumas que considero relevantes. A editora Elefante deu a nós todos/as uma bela edição do livro da Silvia Federici. Recomendo.
*Aline Passos é mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e doutoranda do programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe