Um homem é filmado, sob diversos ângulos, à beira da murada de um edifício alto – o suicídio está à espreita dele e de quem assiste ao vídeo. O homem canta um rap chamado Not Afraid – ele não está com medo, segundo repete, insistente, o refrão.
À diferença da maioria absoluta de seus pares, este rapper é branco. Chama-se Eminem e é um dos maiores vendedores de discos da história, com mais de 80 milhões de cópias computadas numa carreira discográfica iniciada em 1996.
Na sequência de Not Afraid, o protagonista do vídeo começa a gesticular, esbravejar e vociferar, como é próprio desse gênero musical tipicamente norte-americano, e como é típico de Eminem em especial. Antes de o vídeo completar um minuto de duração, o protagonista dá um passo adiante na murada, eminente suicida.
Clipe
Eminem, ou melhor, Marshall Mathers nasceu há 38 anos no estado nortista de Missouri. Descendente de escoceses, ingleses, alemães, suíços e poloneses, foi abandonado pelo pai antes de completar 1 ano, e viveu uma infância de privações que o aproximou da cultura hip-hop. Já adulto e integrado ao mainstream da indústria fonográfica, conquistou destaque único, como exceção agressiva num ambiente dominado por músicos negros.
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Como convém a um garoto rebelde e a um artista que optou por tal gênero musical, fez fama e sucesso em cima não apenas de sua arte, mas também de polêmicas em série. Seus raps usam e abusam de provocações, não raro agredindo verbalmente colegas como Moby, Christina Aguilera e Michael Jackson. Esse último foi parodiado e ridicularizado por Eminem em Just Lose It (2004), que moveu o gênio soul Stevie Wonder a criticá-lo por “chutar um homem caído”.
Outro alvo da ira “eminemiana” foi George W. Bush, tratado no rap Mosh como “essa arma de destruição em massa que chamamos de nosso presidente”. A música foi lançada na semana anterior à reeleição de Bush, em 2004.
Antes, em 2003, Eminem havia sido investigado pelo Serviço Secreto norte-americano por ameaçar o presidente, nos versos de We As Americans: “Foda-se o dinheiro/ eu não rimo para presidentes mortos/ prefiro ver o presidente morto/ isso nunca é dito, mas há precedentes”.
A rebeldia do rapaz se manifesta por vias bem mais sombrias e perigosas. Com mais intensidade nos primeiros anos de sucesso (e antes de apontar dedo acusador moralista para Michael Jackson), Eminem causou repulsa explícita devido ao conteúdo frequentemente misógino, homofóbico e violento de suas letras. Nesse bojo, rimou o desejo de assassinar a própria esposa e foi processado pela mãe devido ao modo, digamos, desrespeitoso de tratá-la em seus discos.
Se sempre houve quem protestasse contra seu veneno misógino e homofóbico, é preciso relembrar que, na contramão, esse homem à beira do precipício vendeu 80 milhões de cópias – uma aprovação silenciosa daquilo mesmo que horroriza uns poucos barulhentos? Seria Eminem um artista violento e preconceituoso, feito sob medida para um público preconceituoso e violento? Quem nasceu primeiro? Bush, Eminem ou os apoiadores de ambos?
O fato é que o rol de atos do homem à beira do precipício inclui ainda uma tentativa de suicídio documentada em 1996 e internações em clínicas de reabilitação por abuso de álcool, drogas e remédios para dormir (a insônia é uma das muradas onde esse artista tenta repousar).
Tudo isso integra Eminem ao rol dos popstars autodestrutivos indomáveis dos Estados Unidos atuais, à moda de Britney Spears ou Amy Winehouse. De volta ao vídeo de Not Afraid, o semblante fechado do músico, o tom dramático da melodia e a atmosfera soturna do cenário no qual ele estrebucha completam a moldura do quadro.
As ameaças suicidas prosseguem, conforme o protagonista surge atravessando uma rua em meio a trânsito intenso, ou preso num jogo labiríntico de espelhos que acaba quebrando com os pulsos. O pulo se consuma lá pelo terceiro minuto: ele se joga no vazio da cidade que se interrompe num abismo – mas não morre, porque se põe a voar, feito super-herói.
Um climão melodramático reveste o rap choroso de Eminem, como de resto acontece também em detalhes menores ou maiores da pop music de Britney, Amy, Robbie Williams ou Lady Gaga. Os super-heróis suicidas desesperados são os donos da feroz indústria musical norte-americana nestes anos pós-11 de setembro. Mas, ora, por que seriam suicidas atormentados, se são super-heróis acima das dores terrestres? Ou, antes, como são heróicos e superpoderosos, se padecem de tanto desespero e sofrimento?
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