Outro dia vi um vídeo filmado em Beirute, no Líbano. Era uma espécie de cortejo, onde as pessoas levavam um caixão com a bandeira da Alemanha, como num cortejo fúnebre. Mas repleto de buzinas e um tambor. E quem acompanhava o cortejo eram pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira, portando bandeiras do Brasil. O vídeo foi filmado no dia dos jogos de Brasil e Alemanha, na data de desclassificação dos alemães desta copa da Rússia.
Por aqui a gente não tem a menor noção do que representa a seleção brasileira de futebol. Não tem a ver com a CBF, com o governo de ocasião, com a patrocinadora da camisa. Em países como Bangladesh, Índia e Haiti foram relatadas histórias comoventes, emocionantes, bárbaras, de torcidas pelo Brasil, com gente pintando rua, fazendo oferenda, arrumando confusão com vizinho. Há uma identificação com a seleção, que é política, cultural, esportiva, lúdica. As matérias foram publicadas nos grandes portais e nos excelentes portais de futebol, como o Trivela. Ouso aqui uma digressão de boteco: a química entre a seleção brasileira é comparável às torcidas dos grandes e ricos times europeus, mas com uma dimensão fantástica, por ser uma aproximação por afinidades culturais, esportivas, política. Sim, política no sentido de um reconhecimento da mágica que é um país pobre, miserável, com uma história repleta de assaltos, ganhando por cinco vezes o torneio mundial de futebol.
Argentina, Uruguai e Brasil desafiam a lógica no assunto futebol. No esporte que todos os povos praticam e gostam, três países periféricos conseguiram feitos impressionantes e rotineiros. Enfrentam ombro a ombro e com vantagens, muitas vezes, os colonizadores, desafiam as potências, fazem os Estados Unidos parecem uma republiqueta de merda, como o cinema americano adora e reiteradamente retrata os países mais pobres de todo o mundo. E, o Brasil, o Brasil, meus caros, é a seleção que está sempre lá, que todos sabem que pode ganhar o caneco. Não faço aqui uma patriotada qualquer, que patriotismo é uma ideia idiota, feita para alimentar ódios que afastam o pensar daquilo que realmente importa. Falo de uma importante questão de estima, de levantar cabeça, de sonhar. A capacidade de sonhar.
Estamos sendo negligentes, muito, com o futebol como este elemento simbólico do Brasil como civilização. Entregamos o futebol ao negócio, deixamos um falso discurso de que são negócios privados os agentes que regulamentam o esporte. Perdemos a imensa oportunidade na copa passada, realizada aqui, de transformar o nosso mundo. Deixamos que um cafajeste como o Marin, algoz de Vlado, colaborador ativo da ditadura militar, fosse o “organizador” da Copa, presidindo a CBF. Deixamos a federação internacional de futebol associação criar leis, regras, conveniências. Fomos covardes. Continuamos sendo. Nunca que a Fifa seria mais forte do que nós numa quebra de braço sobre os rumos do mundial, porque o mundial não pertence à Fifa, embora queiram narrar assim. O mundial é aquele vídeo de Beirute. O mundial é o gol do Panamá e a festa do primeiro gol em copas num jogo onde tomavam de seis. Os donos do mundo cagam as regras nas nossas cabeças porque a gente não reconhece o nosso lugar, nossa força, nossa vitalidade. A gente prefere alimentar uma “rivalidade” com a Argentina ao invés de organizar um campeonato com os hermanos em Bangladesh, na Palestina, no meio do Kosovo ou participar da Copa da África como país convidado.
Não foi por acaso que instrumentalizaram o uso da camisa da seleção para os eventos patéticos que jogaram o país nesta selva de desesperança. Porque reconhecem a força simbólica e querem domá-la, para longe de nossas “Bangladeshes”.
Tem um filme lindo chamado “Shooting for Sócrates”, que conta a história da Irlanda do Norte na perspectiva de um menino que adora futebol e do jogo entre irlandeses e brasileiros na copa de 1986, no México – aquele jogo do gol do Josimar. A seleção brasileira é um instrumento que produz sonhos. E é esta a capacidade, a de sonhar, que nos transforma, a todos. Mais do que torcer pela seleção a gente precisa recuperar o que é nosso.
Esta sexta que passou, primeiro dia sem jogos na copa da Rússia, fez aniversário de 60 anos do caneco na Suécia. Devia ser feriado nacional. E não estou brincando.
29 de junho, 2018. dia sem jogo, véspera das oitavas. Sobre o filme: http://www.cafecomfilme.com.br/filmes/driblando-a-guerra. Publicado em Copa no Fio do Bigode.
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