Na Região Serrana do Rio de Janeiro o desastre já virou rotina. A cada chuva contam-se mortos e desabrigados. Entre 1988 e 2022 mais de 700 pessoas morreram em consequência de enchentes e deslizamentos somente na cidade de Petrópolis. Os piores anos foram 1988, com 134 mortes, 2001, com 67, 2002, com 50, 2011, com 73, 2013, com 33, e fevereiro de 2022, com 235 vítimas fatais no município.
O mais cruel de todos os desastres na Região Serrana ocorreu em janeiro de 2011, quando deslizamentos de terra, juntamente com o transbordamento de alguns rios importantes, tiraram a vida de 947 pessoas, deixaram mais de 300 desaparecidos e cerca de 30 mil pessoas desabrigadas, segundo dados oficiais. Como comunidades inteiras desapareceram e, já que é preciso que haja um reclamante para que alguém entre em lista de mortos e desaparecidos, famílias inteiras podem não ter sido incluídas nos números oficiais. Estudos realizados por associações da sociedade civil demonstram que em alguns bairros e localidades rurais havia mais “relógios” da concessionária de energia do que o número de mortos e desaparecidos declarados pelo poder público. Se em cada domicílio com “relógio de luz” houvesse entre 3 e 5 habitantes, o número real de vítimas pode ser cerca de quatro vezes maior. Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo foram os municípios mais atingidos, mas outras cinco cidades também registraram mortos e desabrigados.
Desde 2011, os atingidos da Região Serrana aguardam por medidas de reparação. As casas prometidas a quem perdeu tudo ou não vieram ou demoraram tanto que algumas famílias, não aguentando continuar dependendo do aluguel social da prefeitura, voltaram a construir e morar em áreas de risco. As obras de recuperação dos leitos dos rios se arrastam por mais de dez anos e algumas avançaram pouco. Os planos municipais de contingência e de defesa civil, na maior parte dos municípios, não contam com a participação ativa das populações atingidas e as associações de vítimas denunciam que eles não atendem às necessidades de prevenção nem de mitigação de desastres. Denúncias de irregularidade no uso de recursos públicos após os desastres se repetem a cada ano, uma vez que a situação de calamidade permite brechas jurídicas para contratação de serviços e materiais sem licitação. O que seria um mecanismo de proteção das populações acaba, sistematicamente, virando pilhagem do dinheiro da sociedade. Na Região Serrana já houve afastamento de prefeitos após denúncias desta ordem. E, a cada temporada de chuvas, a população segue enterrando familiares, perdendo tudo o que seu trabalho suado conseguiu construir.
A repetição sem fim do ciclo “desastre – afluência de recursos públicos para a região – desvio destes recursos” parece representar, na Região Serrana do Rio de Janeiro, o que a seca representou por décadas no semiárido nordestino: um mecanismo de perpetuação infinita de poderes locais perversos, que se alimenta da destruição da vida dos mais pobres e garante a sustentação de frações do capital em escala local, regional e, até mesmo nacional.
Se o sofrimento de 2011 deixou, contudo, algum legado positivo, foi a constituição de um sistema nacional de monitoramento e alarme de desastres mais robusto. A criação do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), o investimento em sistema de alertas antecipados da probabilidade de ocorrência de desastres como deslizamentos de encostas e inundações e o fortalecimento das Defesas Civis municipais e estaduais foram ações colocadas em marcha após janeiro de 2011. Mas, como em muitas políticas públicas no Brasil, o volume do investimento decaiu após alguns anos da tragédia. O Cemaden, por exemplo, recebeu 17,9 milhões de reais de verbas federais em 2022, bem abaixo dos 90,7 milhões recebidos em 2012.
Ainda assim, o último final de semana demonstrou que este sistema é essencial para proteger a vida da população. Após o sistema nacional disparar um alerta de que o volume de chuvas previsto para a Região Serrana poderia ultrapassar o volume da tragédia de 2011, medidas foram tomadas medidas como formação de gabinetes de crise, comunicação massiva para o deslocamento antecipado de populações moradoras de áreas de risco, decretação da suspensão de aulas nas redes públicas de ensino e ponto facultativo para o funcionalismo público municipal e estadual. Em paralelo, algumas prefeituras e Defesa Civil trabalharam de véspera na dragagem de córregos e na limpeza urbana emergencial para evitar entupimento de galerias de águas pluviais. Medidas que poderiam ser acionadas nos momentos de maior risco e, algumas delas, deveriam ser permanentes no cuidado das cidades. O resultado foi um número bem menor de mortos e desabrigados do que em eventos pluviométricos anteriores de mesma ou menor proporção. É claro que um único morto ou uma única família desabrigada já é inaceitável, mas o final de semana passado demonstrou que os instrumentos técnicos e políticos são conhecidos e podem ser utilizados. Só que, rotineiramente, não o são.
Em 2006, um ano após o Furacão Katrina destruir Nova Orleans, nos EUA, o geógrafo marxista Neil Smith disse claramente, como só as mentes mais brilhantes são capazes de fazer, que “não existe desastre natural”[1]. Em menos de 20 mil caracteres, Smith conseguiu resumir o que militantes e cientistas sociais comprometidos afirmavam por décadas: o capitalismo transforma eventos naturais em desastres, e estes reproduzem e aprofundam as desigualdades de classe e raça da sociedade. Segundo o autor, ainda que algumas frações menores e locais do capital tenham prejuízos momentâneos quando da ocorrência de desastres (como o setor de serviços nas regiões de turismo), outras parcelas mais poderosas aproveitam estes momentos para aumentar lucros e “resolver” alguns empecilhos à sua valorização (como a especulação imobiliária, que “limpa” os terrenos de pobres e negros para a implantação de projetos habitacionais de alto luxo). Smith demonstrou também como a magnitude dos desastres é resultado direto de ações deliberadas dos poderes econômicos e políticos, que deixam de tomar decisões técnicas e locacionais capazes de tornar o ambiente humano mais seguro. Esta “irresponsabilidade organizada”[2] tem como objetivo a redução de custos e garantia da rentabilidade das empresas capitalistas, em detrimento da segurança de pessoas e comunidades negras e pobres.
Após o desastre de 2011, a valorização imobiliária da região de Itaipava, em Petrópolis, foi exponencial. A gentrificação do Vale do Cuiabá foi tão evidente que esta se tornou uma das principais áreas de expansão do veraneio de luxo da burguesia carioca, após a retirada compulsória de milhares de famílias mortas ou desabrigadas. Em Petrópolis, como em Nova Orleans. Ano após ano.
Não são acidentes, não são culpa de Deus ou da natureza em fúria. São desastres do capital, que contribuem para a sustentação de grupos políticos e econômicos dominantes.
(*) Flávia Braga Vieira é doutora em Planejamento Urbano e Regional, professora da UFRRJ e coordenadora do Programa de Extensão Universitária Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens. É também autora de “Dos proletários unidos à globalização da esperança: um estudo sobre internacionalismos e a Via Campesina” (São Paulo: Alameda, 2011.)