Alguns dias após os massacres realizados pelo Hamas em território israelense, o primeiro-ministro Netanyahu tratou de fazer aquilo que já era esperado, buscando alguma analogia com os ataques do dia 11 de setembro de 2001 para que pudesse ganhar legitimidade na comunidade internacional. O próprio presidente Biden, em visita a Israel duas semanas após os ataques, declarou que “esses horrores” provocaram na sociedade isralense uma “espécie de sentimento” tal como aconteceu e se sentiu nos EUA.
Em ambos momentos, EUA, Israel e os principais veículos de comunicação no mundo ocidental construíram narrativas que colocavam as histórias de ambos paises em paralelo: ambos eram vítimas do terrorismo e, consequentemente, deveriam agir sempre conjuntamente.
Após os atentados terroristas do dia 11 de setembro, o então primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, percebeu que poderia haver uma mudança de paradigma nas ações contra terroristas no mundo e tentou se aproveitar, ao máximo, da situação, convencendo a comunidade internacional de que todas as formas de resistência palestina deveriam ser enquadradas como terrorismo, até mesmo a Autoridade Palestina, liderada por Arafat. O simples uso da palavra “terror” funcionava como mágica para desumanizar oponentes e justificar quaisquer tipo de ação militar. Sharon tentou vender a ideia de que sua guerra com os palestinos era apenas uma outra frente na “guerra global contra o terrorismo”. O triunfo de Sharon veio quando Bush declarou, em 24 de junho de 2002, que “a paz exige uma liderança palestina nova e diferente, para que um Estado palestino possa nascer” e exigiu que o povo palestino elegesse novos líderes “não comprometidos com o terror”. Desde então, a Autoridade Nacional Palestina, que negociou os acordos de Oslo e que tinha representação diplomática em várias organizações internacionais e em quase todos os países do mundo, passou a ser enfraquecida, sistematicamente, pelos EUA e aliados.
Se Israel pode se aproveitar do discurso da Guerra ao Terror para justificar suas ações, por outro lado procedeu a importantes mudanças no modus operandi dos combates urbanos, influenciando os EUA. Em abril de 2002, houve uma mudança drástica na estratégia das Forças de Defesa Israelenses (IDF) quando foi lançada a Operação Escudo Defensivo, durante a Segunda Intifada, por meio de incursões sucessivas nas seis maiores cidades da Cisjordânia e que resultaram no cerco a Arafat em Ramallah.
A palavra “urbicídio”, utilizada para descrever os massacres e destruição material da infraestrutura básica da vida urbana (casas, escolas, lojas, fábricas, hospitais) durante a Guerra da Bósnia de 1992-95, também passou a ser utilizada para as operações militares israelenses em Gaza e na Cisjordânia a partir de 2002. Um novo modelo de guerra urbana que, por meio do emprego intensivo de armas de alto poder de destruição, passou a afetar integralmente a vida de toda população, criando uma condição de devastação perpétua resultante da extrema dificuldade de reconstruir o que foi destruído. Pode-se dizer, portanto, que o momento atual em Gaza é um desdobramento, levado às últimas consequências, do que se iniciou em 2002.
IDF / Wikicommons
Um soldado israelense ao lado de um poster da Jihad Islâmica comemorando um atentado a um shopping center em Afula. 29/05/2003
O uso do 11 de setembro como paradigma de combate a toda e qualquer resistência, vista, a partir de então, como ação terrorista, aparecia como uma necessidade de segurança diante de um “inimigo sórdido e poderoso” capaz de realizar as maiores barbaridades.
Creio que, de forma sutil, um dos membros da equipe jurídica israelense durante a sessão na Corte de Haia deu-nos a pista do que efetivamente está implícito na lógica do genocídio em curso em Gaza. Segundo o jurista, qualquer que seja a ação militar em Gaza “sempre resultará em mortes trágicas, danos e prejuízos” dada as características do território (alta densidade demográfica), e pelas características do inimigo a ser combatido. Numa leitura apocalíptica, poderíamos dizer que as 29 mil pessoas mortas ( 11 mil crianças) são o preço a pagar para que a nação israelense se defenda de um inimigo como o Hamas.
Mas há uma outra comparação entre o 11 de setembro e o 7 de outubro que é preciso lembrar. Nos 20 de anos da Guerra Global contra o Terror, os EUA causaram a morte de cerca de 4,5 milhões de pessoas por meio de suas operações militares no Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Líbia, Somália e Iêmen, além de deslocar por volta de 59 milhões de pessoas.
Entretanto, como advertiu um analista de um dos mais importantes think-tanks nos EUA, há diferenças significativas entre os contextos do 11 de setembro de 2001 e o Afeganistão e o dia 7 de outubro de 2023, em Gaza. Os EUA poderiam optar pela estratégia de desocupar o Afeganistão, como fizeram vinte anos depois, mas Israel não tem essa opção, pois, em decorrência da geografia, estará para sempre interligado a Gaza.
O analista deveria se perguntar por que 75% dos habitantes de Gaza vieram de cidades que hoje fazem parte do território israelense. Se é verdade que Israel não tem outra opção a não ser ter que “lidar com Gaza”, dizer que o problema é a geografia é mais uma das estratégias para escamotear o fato de que o Estado de Israel foi construído a partir de uma lógica colonial de ocupação e expulsão da população nativa. A situação de “urbicídio” em Gaza é uma das consequências desse longo processo que se iniciou em 1947 e vai muito além do Hamas. Essa luta por libertação nacional terá fim apenas com criação do Estado Palestino livre e soberano.