A vitória de Gabriel Boric nas eleições presidenciais chilenas de 2021 sobre o candidato de extrema direita, José Antonio Kast, despertou um interesse especial na região, não apenas porque implicou uma “virada” nas políticas que Sebastián Piñera vinha implementando no país, mas também porque o Chile supostamente assumiria a agenda de integração regional que o governo anterior havia negligenciado.
Boric, em suma, agregava-se – ou assim afirmava – à tese da “nova onda progressista” na América Latina e no Caribe, após os triunfos de Andrés Manuel López Obrador (2018) no México e Alberto Fernández na Argentina (2019).
A imprensa e o establishment global retratam Boric como um fiel representante da nova esquerda, do atual progressismo na região, um representante de novo tipo, distanciado do populismo e que evita a confrontação com o status quo. Mas a verdade é que ele mantém uma narrativa que reivindica direitos que ele não conseguiu concretizar, o que já cobrou seu preço no processo constituinte, não apenas em sua coalizão governamental heterogênea, mas, fundamentalmente, na perda da base social que o levou a La Moneda.
A contradição que esse cenário implicaria, que para muitos gera problemas em um governo carente de identidade própria, tem sido funcional para a política externa que o governo de Joe Biden mantém tanto em relação à América do Sul quanto em assuntos globais de interesse geopolítico dos Estados Unidos.
O governo de Boric se tornou a caixa de ressonância que permite à Casa Branca terceirizar a condenação da Rússia e solicitar apoio para à Ucrânia na América Latina e no Caribe sem que nenhum funcionário do Pentágono ou do Departamento de Estado o faça diretamente, bem como para condenar governos que são inconvenientes para os interesses de Washington na região, executando essa tarefa a partir das fileiras “progressistas” e usando os mesmos argumentos de John Bolton ou Elliott Abrams, como nos melhores dias de Trump.
Uma janela para a Ucrânia
Vladimir Zelensky encontrou no Chile um importante aríete para apresentar na América do Sul a visão ucraniana da Operação Militar Especial Russa no Donbass. As conversas entre os dois líderes e a participação de Zelensky no parlamento chileno mostram como a “causa ucraniana” foi bem recebida por lá.
A insensatez do jovem presidente o levou a apoiar o mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional contra o presidente Vladimir Putin e, embora o Chile não tenha se juntado ao envio de armas para a Ucrânia, um solicitação feita pelos Estados Unidos nos últimos meses, o país firmou-se como porta-voz da causa ucraniana em fóruns regionais, onde defendeu uma condenação regional da Rússia, como ficou evidente durante a mais recente Cúpula UE-Celac III, realizada no início de julho em Bruxelas, na Bélgica.
Na cúpula birregional, Boric discordou das posições que não queriam que a reunião entre os dois blocos se concentrasse em um conflito que é entendido de forma diferente pelas 33 chancelarias latino-caribenhas:
“É importante que a América Latina diga claramente, o que está acontecendo na Ucrânia é uma guerra inaceitável de agressão imperial, onde o direito internacional é violado, e eu entendo que a declaração conjunta está travada hoje porque alguns não querem dizer que é uma guerra contra a Ucrânia. Caros colegas, hoje é a Ucrânia, mas amanhã pode ser qualquer um de nós”, disse Boric durante a cúpula.
E se a atitude do presidente foi elogiada pelas metrópoles europeias, destacando a harmonia que existia entre elas e o Chile, a ansiedade e a inexperiência demonstradas por sua atitude revelam uma falta de compreensão da divisão que estamos presenciando com a atual mudança na transição para uma nova ordem internacional, uma vez que ele continua analisando e assumindo a geopolítica mundial a partir das “lógicas” coloniais do direito internacional, e não assume que a complexidade atual exige ir além dos discursos dicotômicos de “bem e mal” no concerto mundial.
Governo do Chile
O presidente chileno Gabriel Boric durante sua cerimônia de posse, em 11 de março de 2022
Sobre a Venezuela
Para o presidente chileno, na Venezuela e em outros países da região, há uma violação aberta dos direitos humanos e um declínio na qualidade da democracia nas instituições do país.
Boric prefere se apoiar na retórica do Grupo de Lima em vez de fazer o exercício crítico de questionar, “dadas as suas profundas convicções progressistas”, uma narrativa hegemônica que valida e sustenta uma política de sanções abertamente contrária ao direito internacional e, paradoxalmente, violadora dos direitos humanos.
Na opinião do presidente chileno, não há construção de uma narrativa sobre a Venezuela, como Lula prudentemente assegurou depois de ele próprio ter sido vítima de uma ficção que o levou a ficar preso por mais de um ano. Para Boric, a violação dos direitos humanos na Venezuela “é uma realidade, é grave”, e ele está consciente disso.
O chileno se esquece de que há processos de construção de sentidos que buscam moldar comportamentos, legitimar políticas e atribuir papéis a determinados atores, como apontam os pesquisadores Miskimmon, O'Loughlin e Roselle (2017). O presidente Gabriel Boric não leva em conta que os direitos humanos são uma “gramática em construção”, um discurso em disputa ou uma arma usada pelas potências ocidentais para intervir em países – dezenas deles, só neste século, atestam isso: Iraque, Líbia, Síria, Haiti, e assim por diante.
O problema é que Boric continua a validar um enunciado que justifica, a partir da “esquerda”, uma política agressiva contra toda uma população, sem condenar seus idealizadores, embora ela já tenha sido denunciada na Declaração Política de Quito no marco da IV Cúpula de Presidentes da Celac em 2016 e na Declaração Política da V Cúpula da Celac em Santo Domingo em 2017.
Muito mais do que coincidências
Como o Secretário de Estado dos EUA Antony Blinken mencionou durante sua visita a Santiago em outubro passado: com o Chile há mais do que coincidências, há valores compartilhados e uma harmonia que permite defender “princípios com os quais todos concordamos”, sem blocos ideológicos mediando essa defesa.
Em um momento em que o confronto entre a China e os Estados Unidos se desenvolve no continente latino-caribenho e os recursos estratégicos em nosso solo se tornam uma questão de interesse geoestratégico para as grandes potências, a existência dessas afinidades com os Estados Unidos é um incentivo para o establishment de Washington e Nova York, que acompanha de perto os negócios do país austral com a China em matéria de investimentos, mas que o encara como aliado em sua política contra os países inconvenientes aos seus interesses.
Enquanto, por um lado, o Chile “progressista” de Boric continuará imaginando um “imperialismo russo” inexistente, por outro, continuará condenando “a violação dos direitos humanos” pelo governo do presidente Nicolás Maduro e fazendo tímidas menções à responsabilidade dos países agressores responsáveis pela crise socioeconômica e política na Venezuela.
O detalhe é que, no primeiro caso, não contribuirá para uma solução política, o que o distancia dos novos centros mundiais de tomada de decisão; no segundo, continuará “batendo” e recebendo a mesada que significa lucrar com a migração venezuelana, que até o final de 2020, segundo o INE chileno, chegava a 450 mil venezuelanos.